O universo lingüístico é muito amplo e habitualmente requer que especifiquemos nossos conceitos. Por esta razão quero esclarecer em que sentido diferenciamos os conceitos “vida” e “existência”. Vida é um conceito amplo que contempla todos os seres-vivos como já transparece na própria nomenclatura. Neste sentido o homem é possuidor de vida tanto quanto qualquer outra espécie. O mesmo já não ocorre com o conceito de “existência”, ao menos no sentido que iremos empregá-lo doravante. Existir significa projetar a vida, significa ser o artífice dos seus próprios atos, planejá-los e executá-los com fins pré-determinados. Existir é bem mais do que simplesmente viver, é dar um sentido à própria vida, é não ser objeto da vida, mas sujeito ativo de sua autoconstrução tomando o destino nas mãos e dando-lhe rumo.
Este processo requer domínio de si e acima de tudo requer autonomia da vontade e autonomia racional. Um sujeito que vive sob estruturas de dominação está condenado a viver sem jamais existir. Torna-se instrumento de um sistema que pensa-o como objeto destinado a produzir e gerar riquezas para os detentores dos meios de produção ou então como ávido consumidor de mercadorias, em sua grande maioria supérfluas, produzidas tão somente com o intuito de inflacionar as altas cifras da classe dominante, como se a vida humana valesse menos que o saldo bancário. Satisfazer as necessidades básicas é um privilégio, porém o sistema cria a todo instante, e de forma muito sutil, novas “necessidades básicas”, levando o homem a não satisfazer-se jamais.
Na raiz desta relação está o trabalho. O homem se realiza em seu trabalho na medida em que este é reflexo de si mesmo e também possibilidade de fazer parte deste mundo de consumismo rumo a comodidades cada vez mais atraentes. O homem sem trabalho é um homem sem identidade, sem perspectivas, aquém dos demais, condenado à marginalidade da sociedade, pois, é com o fruto do seu trabalho que o homem consegue satisfazer suas necessidades e conquistar o seu espaço. Para o trabalhador o seu trabalho é fonte de sobrevivência e possibilidade de progresso, enquanto para o patrão fonte de enriquecimento. Pelo trabalho o homem deveria conquistar sua liberdade, mas a estrutura vigente sufoca esta liberdade transformando-o num objeto dentro de uma estrutura de competitividade onde o outro passou de aliado à ameaça.
Desta forma, poderíamos afirmar que no trabalho há a possibilidade de uma dupla dimensão: o homem pode se auto-realizar - na medida em que exterioriza o seu eu, como também pode se escravizar - na medida em que é transformado em objeto, instrumento e não consegue transcender esta relação. Dito de outra forma, por um lado, se faz necessário que o homem se encontre e se identifique com sua atividade e que fortaleça este aspecto de forma a sufocar cada vez mais o aspecto que o aliena de sua auto-transcendência manifesta nas suas obras; e por outro lado é preciso que o homem resista a toda forma de opressão imposta pelo trabalho sem, contudo, tornar-se vítima de sua resistência se marginalizando do mercado de trabalho.
Para que isto possa ocorrer é necessário que haja consciência desta dupla dimensão, conhecimento de sua estrutura de funcionamento, intenção de superação desta estrutura e, ousaríamos afirmar, que haja resignação por parte da classe trabalhadora como um todo, pois só assim seriam abaladas as estruturas injustas desta sociedade que nos é apresentada.
Dentre as muitas necessidades apresentadas ao homem, salientamos uma delas: a necessidade de o homem ser dono de si. O homem que não pensa e não age por si, não pode ser livre e feliz. Nem mesmo poderia ser chamado de homem em sentido restrito, pois, se entendermos o homem tão somente como um animal racional, não poderíamos afirmar que um ser que não reflete por si, seja homem. Este pensamento pode parecer radical, mas tem seu espaço dentro da lógica da instrumentalização do homem. Contudo, o homem tem outra esfera que não pode ser jamais esquecida que é a esfera dos sentimentos, da emoção, da sensibilidade, da afetividade. E, acredito que esta esfera sofre ainda muito mais os impactos do mundo do trabalho, pois o homem sente-se diminuído por sua luta inglória de conquistas no mundo do trabalho quando não consegue o desempenho, muitas vezes mirabolante, propostos pelo mercado de trabalho. Sente-se incapaz, mesquinho, inútil, pois o mercado consegue disseminar a idéia que o mundo pode ser conquistado pelos mais aptos. Isto significa dizer que as estruturas injustas são postas como fluxo normal do mercado de trabalho e que se houver alguma falha, esta não é do modelo apresentado, mas do indivíduo que a ela não consegue responder, não consegue se adaptar.
Como transpor esta barreira? Estudando o sistema e vendo-o como “um” sistema tão somente e não como “o” sistema; interando-se da evolução do mundo do trabalho e salientando nele o seu aspecto libertador e não o aspecto opressor; fortalecendo as relações no mundo do trabalho a fim de superar o individualismo e a indiferença entre as classes trabalhadoras e, por fim, dando ao trabalho um significado digno de quem tem nas mãos as rédeas da vida e transforma sua vida em existência e não apenas em sobrevivência.
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2 comentários:
Hoje em dia as pessoas mais sobrevivem do que existem.
Há um domínio que corta a existência, infelizmente.
Meu querido professor, muitos passam pela vida sem existir. Diante do sistema perverso que nos envolve, a grande maioria não encontra meios sequer subsistência. Como citado no texto, o trabalho dignifica o homem. Muitos não conseguem trabalho, outros trabalham debaixo de pressão e opressão, e muitos outros passam pela vida sem conseguir trabalhar. Como refletir, se há tanta carência? E muitos que podem fazê-lo estão correndo atrás de grandes ganhos e riquezas materiais. E, somente a reflexão pode nos conduzir ao cerne da nossa existência. Um grande abraço fraterno, Ilma Câmara Barcellos
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