terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

EDUCAR PARA A VIDA E A FELICIDADE

 

Por mais que os índices de formação escolar atuais estejam constantemente apresentando melhorias, e com isso consigamos importantes avanços tecnológicos e científicos, os problemas éticos e sociais parecem não apresentar os mesmos progressos e sinalizam que há um distanciamento entre a visão de mundo atual e a construção de um mundo melhor e mais justo. Vemos isso diariamente nos jornais e revistas quando pessoas com ótima formação escolar saem algemadas de suas casas e vão parar no banco dos réus.

Um dos motivos disso estar acontecendo pode ser porque as virtudes originariamente presentes na transmissão do saber foram adquirindo finalidade prática ou então foram substituídas por outras com este fim, de modo que honra, coragem e prudência, por exemplo, cederam lugar, à excelência em atendimento, ao despertar necessidades e à empatia com o cliente, pois o outro é agora um cliente ou consumidor; um instrumento para se adquirir recursos, uma vez que o relacionamento passa a ser intermediado pelo elemento econômico ou pelo recurso financeiro.

Nos dias atuais, parece que o sucesso acadêmico está sendo medido mais pelo sucesso financeiro do que pela melhoria de caráter do cidadão. Porém, acima do julgamento acerca do aspecto positivo ou negativo de tais mudanças, cabe o despertar da consciência acerca do modo como isto poderá nos auxiliar permitindo antever, tanto quanto possível, a educação do futuro. Só conhecendo o passado, vivendo o presente e buscando antever o futuro é que poderemos tê-lo mais próximo de nossas mãos e não sermos por ele surpreendidos.

Queremos com isso mostrar que a educação é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade pela vontade consciente e a razão. Uma educação consciente eleva a capacidade a um nível superior e cria melhores formas de existência humana. Na educação a força vital criadora atinge um alto grau de intensidade através do conhecimento e da vontade, dirigida para a consecução de um fim. A educação pertence por essência à comunidade, faz parte do caráter comunitário do homem enquanto zwon politikon (zoon politikon – animal político) e é fonte de toda ação e de todo comportamento. O influxo da comunidade tem força maior no educar entendido como resultado da consciência viva de uma comunidade humana. A educação participa no crescimento da sociedade, pois a história da educação está condicionada pela transformação dos valores para cada sociedade.

Educação e cultura

Contudo, a educação fica impossibilitada de ocorrer quando a tradição é destruída, e é bom lembrar que a estabilidade também pode ser indício de momentos finais de uma cultura. Qualquer povo altamente organizado tem um sistema educativo, mas nenhum igual ao ideal grego de formação humana. Falar de uma multiplicidade de culturas pré-helênicas é uma falsificação histórica, pois o mundo que se inicia com os gregos é, pela primeira vez de modo consciente, um ideal de cultura como princípio formativo.

O que hoje denominamos cultura não passa de um produto deteriorado. A Paidéia não é para os gregos um “aspecto exterior da vida” e por isto convém nos assegurarmos do seu autêntico sentido. É preciso voltar os olhos para as fontes de onde brota o impulso criador do nosso povo. Colocar conhecimentos como força formativa a serviço da educação e formar verdadeiros homens é uma ideia que só podia amadurecer no espírito daquele povo. Os gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo de construção consciente.

Para todos os povos o conteúdo da educação parece ser o mesmo: moral e prático, ao mesmo tempo; reveste-se da forma de mandamentos e se apresenta como comunicação de conhecimentos e aptidões profissionais à qual os gregos deram o nome de téchne (τέχνη). Os preceitos foram mais tarde incorporados à lei dos Estados gregos, mas as regras das artes e ofícios resistiam à exposição escrita dos seus segredos; e o contraste entre estes dois aspectos da educação pode ser acompanhado ao longo da história.  

Ao distinguirmos as expressões educação e formação, percebemos que a formação se manifesta na forma integral do Homem, na sua conduta e comportamento exterior e na sua atitude interior, produtos de uma disciplina consciente, o qual a princípio limitava-se à nobreza; porém, a sociedade burguesa adotou a ideia e converteu-a num bem universal para todas as gentes. A nobreza é a fonte do processo espiritual pelo qual nasce e se desenvolve a formação de uma nação; a formação é a forma aristocrática de uma nação, um ideal definido de homem superior.

Paideia e mito

A palavra Paidéia só aparece no século V, com Ésquilo em Sete contra Tebas, e tinha o significado de “criação de meninos”, adquirindo mais tarde um sentido mais elevado na formação grega, identificado com a aretê, equivalente a “virtude”, como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro. É no conceito de aretê que se concentra o ideal de educação dessa época.

Testemunho da cultura aristocrática é Homero com a Ilíada e a Odisseia, dando forma ao ideal de Homem e se convertendo em força de formação de muito maior amplitude. Em Homero aretê é usada no sentido de excelência humana e como superioridade de seres não humanos, sendo que o homem comum não tem aretê, pois ela é um atributo próprio da nobreza; senhorio e aretê não se separam e utilizam a mesma raiz aristós, superlativo de distinto e escolhido.

Só nos livros finais, Homero entende por aretê as qualidades morais e em geral designa por aretê a força e a destreza dos guerreiros e, acima de tudo, o heroísmo. A própria poesia reconhece, ao lado da aretê, outras medidas de valor, sobretudo, a prudência (sophrosyne) e a astúcia, mas a aretê estava enraizada na linguagem tradicional da poesia heroica. Também o adjetivo agathos, corresponde ao substantivo aretê de nobreza e bravura militar. Quase nunca tem o sentido posterior de “bom”, como aretê não tem o de virtude moral. No entanto, todas as palavras deste grupo têm em Homero um sentido “ético” mais geral e designam o homem nobre que se rege por normas certas de conduta; os mais altos preceitos de uma conduta distinta dimanam daquela fonte.

O sentido de dever é, nos poemas homéricos, uma característica essencial da nobreza. A força educadora da nobreza reside no fato de despertar o sentimento do dever. A luta e a vitória significam a comprovação da aretê conquistada na rigorosa exercitação das qualidades naturais. Vemos esta consciência pedagógica de nobreza nos jogos fúnebres em honra a Pátroclo morto e quando Glauco, ao enfrentar Diomedes no campo de batalha, inúmera seus antepassados ilustres: “Hipóloco me gerou, a ele devo a minha origem. (...) advertiu-me que lutasse por alcançar a mais alta virtude humana e fosse, entre todos, o primeiro”. O sentimento nobre formava a juventude heroica e a Ilíada testemunha a elevada consciência educadora da nobreza, apresentando uma nova imagem do homem perfeito, sendo Aquiles a expressão desse ideal; ele foi educado “para proferir palavras e realizar ações”.

Intimamente ligada à aretê está a honra, pois os gregos preferiam morrer a viver sem honra. Segundo Aristóteles a honra é a expressão natural da medida ainda não consciente do ideal de aretê; o homem homérico só adquire consciência do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence. Para Homero a negação da honra era a maior tragédia humana; a ânsia de honra era insaciável e era natural que os heróis exigissem uma honra cada vez mais alta; o elogio e a reprovação são a fonte da honra e da desonra e foram considerados pela ética o fato fundamental da vida social, o pagamento era secundário. Até os deuses reclamam a sua honra e se comprazem no culto que lhes glorifica os feitos; ser piedoso quer dizer “honrar a divindade”. Tétis suplica a Zeus: “Ajuda-me e honra meu filho, cuja vida heroica foi tão breve. Agamêmnon arrebatou-lhe a honra. Honra-o tu”.

Educação e filosofia

O pensamento ético de Platão e Aristóteles baseia-se na ética aristocrática da Grécia arcaica, naturalmente diferenciado dos tempos homéricos. Aristóteles tem muitas vezes os olhos postos em Homero e é digno de nota que Aristóteles visse na altivez uma virtude que pressupõe todas sendo o mais alto ornamento. Ele reserva um lugar para a altiva aretê da velha ética aristocrática. A honra é o troféu da aretê e a altivez provém da aretê, não sendo por si mesma um valor moral. A aretê conserva sempre a forma recebida da velha ética aristocrática e neste conceito se fundamenta o caráter aristocrático do ideal de formação dos Gregos.

Aristóteles apresenta a aretê como uma autoestima elevada à sua maior nobreza e descobre uma das raízes originais do pensamento moral dos Gregos. O eu não é o sujeito físico, mas o mais alto ideal de Homem que todo nobre aspira. Só o mais alto amor deste eu é capaz de “fazer sua a beleza”, mas que é para Aristóteles esta beleza? São as ações do mais alto heroísmo moral: a defesa dos amigos, o sacrificar-se pela pátria, abandonar dinheiro e bens para “fazer sua a beleza”; e assim o heroísmo é o que há de mais peculiar no sentimento de vida dos Gregos; é a subordinação do físico a uma “beleza” mais elevada.

No Banquete, Platão mostra o sacrifício do dinheiro e dos bens para se alcançar o prêmio de uma glória duradoura, o que explicaria o impulso do homem mortal em busca da própria imortalidade. Percebe-se que é a ideia de aretê que liga os dois grandes filósofos ao poeta Homero.

Educar para o mercado de trabalho

Na idade moderna a divisão entre trabalho e lazer, conhecer e fazer, homem e natureza resultou na cisão dos conteúdos da educação. Esses dualismos culminaram na demarcação entre as mentes individuais e o mundo e entre uma mente e outra, bem como na antítese entre os conteúdos (relacionados ao mundo) e o método (relacionado à mente).

A educação que separa mente e mundo implica uma concepção errônea da relação entre conhecimento e interesses sociais. A identificação da mente como consciência psíquica privada é recente. Conhecedor era a “Razão”, quando o indivíduo conhecia era dxa, doxa (opinião). Entre os gregos, a observação era severa e o pensamento livre, porém faltava um método experimental e os indivíduos não podiam se envolver com o saber.

A Idade Média preocupando-se com a salvação da alma individual trata o conhecimento como algo dentro do indivíduo; no século XVI, com o individualismo econômico e político, era dever do indivíduo buscar o conhecimento por si mesmo mediante experiências privadas e pessoais; e assim a mente foi tomada como algo totalmente individual. Montaigne, Bacon e Locke denunciavam a aprendizagem adquirida por meio de outrem e afirmavam que mesmo as crenças verdadeiras não eram conhecimento sem a experimentação.

Esse isolamento se refletiu epistemologicamente criando um abismo entre a mente que conhece e o mundo conhecido. Partindo de sujeito e objeto criaram-se teorias que explicavam como eles se interconectavam para resultar em conhecimento. Tais teorias afirmavam que não podemos conhecer o mundo como ele é, só a impressões, ou que não existe mundo além da mente individual. Este individualismo traduziu-se em subjetivismo filosófico.

Os homens não estavam lutando para se libertar da conexão com a natureza e com os outros, mas lutando por maior liberdade na natureza e na sociedade. Queriam formar suas crenças sobre o mundo sem intermediários, em vez de recebê-las da tradição, pois sentiam que grande parte do que era tido como conhecimento era apenas opinião.

Note-se que na era moderna os homens não descartaram todas as crenças, mas partiram daquilo que era transmitido e investigaram criticamente suas bases e o resultado destas revisões foi uma revolução das concepções de mundo. Cada nova ideia se originava em um indivíduo, mas a sociedade governada pelo costume não encorajava o desenvolvimento de novas ideias, a tendência era suprimi-las tratando-as como meras fantasias. A liberdade de observação não foi facilmente assegurada, foi preciso lutar por ela; primeiro a sociedade permitiu e depois encorajou as reações individuais que se desviavam do costume. As teorias filosóficas consideravam a mente individual uma entidade apartada de outras mentes, permitindo que deste individualismo intelectual fosse formulado um individualismo moral e social.

Esse individualismo moral é estabelecido pelas separações conscientes entre as diferentes áreas da vida, onde a consciência de cada pessoa é um continente fechado em si, muito embora a ação se dê em um mundo público e comum. Admitida uma consciência egoísta, como pode ocorrer a ação voltada para os outros?

 

Assista ao vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=5zHFAFQ3vAc

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Riqueza não garante qualidade de vida

Nos países ocidentais, o crescimento econômico é a principal medida do bem-estar de uma população. Mas existem países que consideram outros fatores, como a preservação da natureza e da cultura e a própria felicidade.  

O Produto Interno Bruto (PIB) per capita e o crescimento econômico são normalmente os indicadores utilizados para medir o bem-estar e a qualidade de vida de um país. A suposição básica é que crescimento significa riqueza, e quando a economia está bem todos ficam satisfeitos.

No entanto, já há 40 anos o Clube de Roma, organização que reúne especialistas internacionais para lidar com questões como sustentabilidade, alertou em seu relatório Limites do crescimento que uma economia baseada apenas na exploração de recursos naturais, acompanhada por um aumento permanente da população mundial, leva à destruição dos fundamentos da vida.

Em 1987 foi a vez de o conceito de sustentabilidade aparecer pela primeira vez no debate internacional sobre desenvolvimento. O relatório final da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento afirmava que um desenvolvimento só pode ser sustentável se "satisfazer as necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades".

O presidente Evo Morales da Bolívia, país que insituia a política do "Buen Vivir" em 2009

Desenvolvimento em harmonia com a natureza

O conceito de Buen Vivir, ou Viver Bem, que o Equador e a Bolívia colocaram nas suas constituições, em 2008 e 2009, respectivamente, também se baseia no conceito de sustentabilidade. A intenção é reavivar os conhecimentos tradicionais e as experiências dos povos indígenas como alternativa ao capitalismo ocidental, visto como uma herança colonialista, responsável pela grande divisão social nos dois países.

No Buen Vivir, o foco não está em superar o subdesenvolvimento por meio do progresso econômico, mas por meio do progresso social. Este inclui a preservação da identidade cultural e das sabedorias tradicionais, assim como o acesso à educação. Bem-estar não é definido pelo crescimento material e consumo, mas pelo desenvolvimento em harmonia com a natureza.

A realidade econômica e social nos dois países ainda está longe desses objetivos, mas a filosofia do Buen Vivir deve ser vista como um caminho para a transformação social. Um passo inicial foi a criação da iniciativa Yasuní-ITT, que, em vez de incentivar a exploração das reservas de petróleo do parque nacional Yasuní, no Equador, visa proteger a biodiversidade da Amazônia e a população local. Em retorno, o país espera que a comunidade internacional compense metade da renda perdida com a não-exploração dos recursos naturais.

África: valorização da humanidade

O conceito de Buen Vivir está intrínsecamente ligado às tradições indígenas dos dois países andinos e não pode ser simplesmente aplicado em outras regiões. Mas a crença de que o homem é parte de um todo e que respeito, solidariedade e dignidade humana devem ser a medida para ações econômicas e políticas também integra o conceito Ubuntu, na África do Sul. O nome vem de dois idiomas Bantu (Zulu e Xhosa) e significa humanidade. Com outros nomes, o conceito também existe em outras partes do continente africano.

Na África do Sul, após o fim do regime segregacionista apartheid, o presidente Nelson Mandela colocou o Ubuntu no centro da ação política: humanidade e senso de comunidade deveriam formar os valores da nova nação que surgia. Com o tempo o conceito acabou sendo deixado de lado, mas o Ubuntu Education Fund (Fundo Ubuntu para Educação) permanece comprometido com os princípios que dão nome à organização, através do apoio a projetos de saúde e educação.

Nelson Mandela ao se tornar presidente da África do Sul tentou implantar a filosofia Ubuntu

Felicidade como política nacional

Como uma antítese budista à busca ocidental do lucro máximo, o rei do Butão formulou em 1972 a ideia de Felicidade Interna Bruta (FIB), que deveria ser mais relevante do que a performance econômica do país e se baseava em quatro pilares: proteção ao meio ambiente, preservação de valores culturais, desenvolvimento econômico e social para toda a sociedade e boa governança.

Ao implementar o seu FIB, o rei estabeleceu que saúde e educação deveriam ser gratuitas e mais de 30% do orçamento nacional, direcionado a gastos sociais. As florestas, que cobrem mais de 70% do território do país, se tornaram áreas de preservação. Investimentos públicos e novas propostas de legislação devem ser analisadas por um comitê especialmente criado para essa função. Caso os projetos não estejam de acordo com o conceito do FIB, eles devem ser debatidos no Parlamento e revistos.

O Centro de Estudos do Butão, que possui status de ministério, realiza regularmente pesquisas sobre o índice de felicidade entre a população. As perguntas são sobre renda, segurança no trabalho, acesso à educação e à saúde, condições do meio ambiente, bem-estar psicológico e disponibilidade de tempo. Ao menos 52% da população se considera "feliz", 45% se diz "muito feliz" e apenas 3% afirma estar "não muito feliz".

Indicadores globais de qualidade de vida

Os exemplos citados acima levam a crer que a estabilidade e o bom funcionamento das estruturas sociais, o conhecimento da própria identidade cultural, assim como a preservação do meio ambiente, são fatores essenciais para uma qualidade de vida satisfatória. Esses conceitos também têm em comum o fato de estarem fortemente enraizados nas tradições e religiões dos seus respectivos países, o que limita as possibilidades de exportá-los a outras nações.

Para tornar possível a comparação do bem-estar social em diferentes países e culturas, a ONU desenvolveu o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Nos relatórios anuais publicados desde 1990, não apenas a renda per capita é levada em conta, mas também a expectativa de vida e o nível de educação. A análise da expectativa de vida permite avaliar a situação dos sistemas de saúde, padrões de higiene e condições alimentares. O fator educação reflete o padrão de vida e a participação dos indivíduos na sociedade.

No topo da lista estão países ocidentais industrializados que se ocupam das questões do bem-estar social, como a Noruega, a Austrália e a Holanda. Os EUA estão na quarta posição, a Alemanha em nono e o Brasil é o 84º. Os últimos 15 países dos 187 dos listados no IDH estão na África subsaariana. O IDH da ONU é criticado por não levar em conta as questões ambientais.

Felicidade, mas a que preço?

Existe também o Happy Planet Index (HPI), ou seja, o índice de felicidade do planeta. A organização independente New Economics Foundation criou há sete anos o primeiro ranking que, além da expectativa de vida, analisa também a satisfação pessoal e a pegada ecológica das populações. São pesquisados, entre outros pontos, quantos recursos naturais são consumidos per capita para atingir o padrão de vida de um país.

No primeiro lugar no ranking de 2012 estava a Costa Rica, seguida do Vietnã. O Brasil está em 32º, a Alemanha ocupa a 46ª posição e os EUA ficaram em 105º lugar, bem atrás do Quirguistão (61º) e de Bangladesh (31º). Concluir que os americanos são mais infelizes que os quirguizes e os bengalis seria um exagero. o HPI apenas afirma que os americanos compram sua felicidade através do consumo excessivo de recursos naturais.

Autora: Mirjam Gehrke (rc)
Revisão: Alexandre Schossler

 

Extraído de https://www.dw.com/pt-br/riqueza-n%C3%A3o-garante-qualidade-de-vida/a-16568082

Acesso em 21.jan.2021.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

A CIÊNCIA É INCAPAZ DE EXPLICAR A NATUREZA DA REALIDADE

Jorge Pontual — Eu adorei seu livro. Eu li duas vezes, mas não significa que entendi tudo. Mas eu acho bom tratar deste tipo de assunto. “Por que o mundo existe?”
Jim Holt — Tentei ser simples e elucidativo, mas é o mais sublime dos mistérios.
Jorge Pontual — Você parece ter se divertido muito escrevendo.
Jim Holt —
 É verdade. Foi uma grande busca. Eu fiz como se fosse uma história de detetive e fui atrás dos melhores suspeitos cósmicos, conversei com os maiores pensadores do mundo e os fiz pensar alto. É ótimo ouvir um grande físico, filósofo, teólogo ou romancista pensando alto. Eles dizem coisas mais extraordinárias. Estamos aqui lutando com o mistério que intriga todo mundo, e você se pergunta se está no caminho certo, mas, quando os ouve falando, pensa: “Talvez eles não sejam tão mais inteligente que eu”. Portanto, é um processo muito libertador conversar com grandes pensadores sobre este, que é o maior dos mistérios.
Jorge Pontual — Para algumas pessoas, essa é a questão fundamental. Por que isso?
Jim Holt —
 Bem, é fundamental porque não se pode entender como é o mundo até se entender por que o mundo existe. O grande filósofo Wittgenstein disse que o enigma não é como o mundo é, mas sim que exista um mundo. Então, sim, esse é nosso maior questionamento, mas de certo modo, é também o mais simples deles. Não se trata apenas de uma questão de especulação intelectual. Recentemente, nos EUA, surgiu um movimento chamado “neoateísmo”, com pensadores como o biólogo evolutivo Richard Dawkins e outros defendendo o ateísmo com muita veemência, dizendo que devíamos crescer e abandonar a ideia de Deus. E os defensores da religião dizem que a ciência pode explicar o que é o mundo, mas não pode explicar por que o universo existe. De certo modo, esse é o último argumento da ortodoxia religiosa contra a visão do mundo laica e científica. Em programas da televisão americana, as pessoas têm falado sobre a razão da existência do universo. Se você não aceita a existência de Deus, como pode explicar isso? Isso se tornou assunto frequente dos noticiários enquanto eu escrevia o livro.
Jorge Pontual — Mas como você explicaria, sem falar de Deus, o surgimento de algo a partir do nada?
Jim Holt —
 A história religiosa é que Deus criou o mundo a partir do nada. Assim, a equação é: Deus + nada = mundo. Se tirar Deus da equação, o que irá colocar ali? Alguns físicos têm escrito best sellers nos quais afirmam que a equação seria: leis da Física + nada = algo. Esse algo seria o Big Bang. Mas isso gera vários problemas. No livro, eu exploro todas as possibilidades, começando com a hipótese de Deus e questionando: “Se você não acredita em Deus, a ciência pode responder à pergunta?” Acho que não. Então pensei que talvez haja uma explicação mais profunda, que vá além das alternativas tradicionais, que são Deus e a ciência. E foi para aí que minha busca me levou.
Jorge Pontual — E é algo muito profundo e difícil de entender. Para você, qual é a explicação mais lógica, aceitável e plausível para a existência do universo?
Jim Holt —
 Essa é a finalidade da minha busca. Ir além da ciência e da filosofia e encontrar os princípios verdadeiros que regem a realidade como um todo. E há dois princípios aos quais eu acabei apelando. Um é o da simplicidade, que é um princípio científico, segundo o qual se deve sempre procurar a hipótese mais simples para explicar os dados. O outro é o princípio da totalidade, que remonta ao filósofo grego Platão. E, combinando esses princípios e raciocinando de maneira sutil, eu cheguei à conclusão de que, ironicamente, o tipo de realidade que se deve esperar não é o nada, pois, obviamente, há alguma coisa. O nada é uma realidade muito especial, muito simples. É uma característica especial. Também não podemos esperar o mundo mais completo, em que todas as possibilidade imagináveis se tornam realidade. Devemos esperar algo entre dois, uma espécie de realidade infinita, confusa e medíocre. O tipo de realidade que vemos ao nosso redor. Seria como um buraco cheio de lixo cósmico. E o impressionante é que o lugar que ocupamos no universo parece mesmo ser isso. Veja a descoberta recente do bóson de Higgs. O bóson de Higgs basicamente torna o universo um lugar mais confuso do que seria sem ele, pois quebra a simetria e dá massa a algumas partículas, mas tira de outras. As próprias leis da Física, quanto mais exploramos o Cosmos, tendem a ser mais confusas, e isso se coaduna com a conclusão a qual eu cheguei — que, aliás, não é minha... eu sou só jornalista. Apenas me apoiei sobre os ombros de um grande filósofo de Oxford, Derek Parfit. Foi ele que me permitiu ver sob um novo enfoque toda a questão de por que há alguma coisa, em vez do nada.
Jorge Pontual — Mas você também é formado em Filosofia, não é?
Jim Holt —
 E em Matemática.
Jorge Pontual — Então você é um jornalista que sabe bem o que está falando. Eu acho que uma das coisas que impressionam a maioria dos seus leitores é que muitos daqueles pensadores trabalham com a hipótese de um multiverso, um número infinito de universos, ou de mentes infinitas, mundos múltiplos. O que é isso? Como eles chegaram a isso?
Jim Holt —
 Acho que isso está bem claro. A história cientifica é a seguinte: este universo teve início há 13,7 bilhões de anos, com o evento que chamamos Big Bang. Portanto, parece que houve algo e que, de repente, surgiu um universo. Mas isso provavelmente não foi o que aconteceu. O Big Bang deve ter sido apenas um acontecimento local, que já aconteceu várias vezes, e nós vivemos neste multiverso eterno, com vários universos sendo criados o tempo todo. Isso, na verdade, levanta várias possibilidades. Uma delas é a de que o nosso universo foi criado por um físico hacker em algum outro universo. Eu conversei com um grande físico russo, Andrei Linde, que criou a teoria da inflação caótica, que é a melhor teoria do multiverso. Ele disse: “Veja, é possível criar todo um universo com 1/100.000 grama de matéria, em laboratório. Não podemos fazer isso hoje por não termos a tecnologia, mas é claramente possível que um físico hacker em outro universo faça um universo igual ao nosso. E, se for assim, ele não poderia se comunicar conosco, não poderia nos mandar uma mensagem, mas poderia codificar alguma mensagem nas leis básicas da Física, de modo que os físicos pudessem descobrir a mensagem”. Mas ele disse que nosso universo é tão básico e bagunçado, que parece mesmo ter sido criado por um hacker, não por um deus. Se Deus tivesse feito o universo, ele seria perfeito. Só que ele não é perfeito. Há 37 famílias de partículas elementares, as leis da Física são confusas. E o mundo é um desastre. Temos crianças com câncer, por exemplo, e como a história religiosa poderia justificar isso?
Jorge Pontual — Uma coisa que eu aprendi com seu livro foi que a hipótese de um multiverso é mais simples, porque explica a física quântica e essa sintonia fina das condições físicas que tornaram a vida possível, bem como nossa existência.
Jim Holt —
 É verdade. As pessoas que querem defender a religião dizem que o universo em que vivemos é sintonizado com precisão. Todas as leis da Física são perfeitas para permitir o surgimento de criaturas como nós.
Jorge Pontual — É uma chance em bilhões, não é?
Jim Holt —
 É, mas, se você tiver vários universos, alguns deles devem ter a temperatura certa e as qualidades que permitam a vida humana. Essa é uma maneira de a ciência responder à religião. É um pouco mais sutil, pois o multiverso... Não sei se consigo expor essa linha de pensamento, pois é meio matemática...
Jorge Pontual — Voltando a essas hipóteses, elas não podem ser provadas, certo? É metafísica? O que é isso?
Jim Holt —
 Na verdade, não. A hipótese do multiverso tem implicações observáveis para o universo. Nós temos satélites que analisam a radiação deixada pelo Big Bang, e eles estão cercados por um nível bem baixo de radiação. Na verdade, se você ligar sua televisão e ficar trocando de canal, poderá ver um pouco dessa radiação. Isso é eco do Big Bang. E, analisando os contornos e detalhes específicos dela, temos várias provas que sugerem que nosso universo é apenas um entre muitos. Nós nunca poderemos observar esses outros universos, pois eles estão separados do nosso por regiões de espaços que inflam mais rápido do que a velocidade da luz. Mas nós temos boas provas indiretas da existência disso. Para a ciência, isso já é bom o bastante. Não conseguimos ver os átomos, mas nós temos várias justificativas teóricas para acreditar que os átomos são reais. E o mesmo vale para os universos alternativos.
Jorge Pontual — E a ideia de que nós vivemos em uma simulação?
Jim Holt —
 A hipótese da Matrix.
Jorge Pontual — Exatamente.
Jim Holt —
 Ela também suscita a pergunta: qual é a natureza da realidade? Parece um pergunta muito pomposa, mas qual é...? Isto parece uma madeira sólida, não?
Jorge Pontual — É.
Jim Holt —
 Sabemos que ela é feita de átomos, que são, basicamente, espaços vazios. Se começarmos a olhar dentro do átomo, da matéria em nível subatômico, ela tende a se dissolver em matemática pura. Não há nada real ali. É como a simulação por computador: não há nada real, apenas informação. Isso levanta várias possibilidades estonteantes. Uma delas é a de que o universo é informação estruturada. Ou mesmo uma mente estruturada. Portanto a ciência pode nos dizer como a realidade é estruturada matematicamente, mas não pode nos dizer qual é a natureza intrínseca dessa realidade. E há várias coisas que a ciência não pode explicar. A maneira como essas folhas nos parecem verdes, o sabor do hortelã, o que sentimos quando levamos um beliscão. Isso tudo está sujeito à realidade mental. E a ciência não consegue explicar como o mundo da consciência surge a partir do mundo físico. Então uma das coisas que temos que fazer quando questionamos por que há algo, em vez do nada, por que existe um universo, em vez de um vazio, é começar a pensar na pergunta: “O que é a existência?” Ela é exatamente o que a ciência nos diz ou há um componente mental nela? Ela pode ser uma simulação por computador, como você mesmo levantou? Não uma simulação em um computador de verdade, mas uma informação estruturada e abstrata. Essas são as perguntas que eu faço. É claro que não podemos respondê-las em definitivo, mas, quanto mais você luta com elas, mais você consegue ver as linhas gerais da resposta se formando.
Jorge Pontual — Que impacto isso teve em você, do ponto de vista intelectual e até mesmo emocional?
Jim Holt —
 Emocionalmente, foi um impacto grande, porque a pergunta “por que o universo existe?”, a pergunta cósmica, combina com a pergunta existencial “por que eu existo?” E, quando se levam em conta todos os seres humanos possíveis... Geneticamente, há trilhões e trilhões de seres humanos possíveis. Mas, desde que a espécie humana surgiu, apenas cerca de 40 bilhões de humanos ganharam vida. Ou seja, uma fração minúscula dos seres humanos possíveis. E isso inclui você e a mim. Por que tivemos tanta sorte? Como ganhar a loteria cósmica? Ou podemos ser desfortunados. Depende de como você vê sua existência. Na peça “Édipo Rei”, de Sófocles, o coro diz: “Não ter nascido é melhor do que tudo.” Assim, a pergunta “por que eu existo?”, como eu disse, combina com a pergunta sobre a existência do cosmo. Eu passei muito tempo me perguntando o que eu sou, o que é o “eu”. Descartes disse: “Penso, logo existo.” Mas o que é o pensar? É meu corpo? Não, pois parece que, se colocassem minha consciência em um robô, eu poderia sobreviver sem meu corpo. Outra questão emocional que surgiu foi o nada de cada um de nós, que vamos encarar com a morte. Eu não acredito que sobreviverei à morte do meu corpo. A ideia de que a existência foi precedida por éons de nada, que, repentinamente, ganhamos consciência, vivemos um pouco e voltamos ao nada...
Jorge Pontual — O livro aborda muitas questões pessoais, por causa das suas perdas.
Jim Holt —
 É verdade, eu senti que fui golpeado pela morte enquanto eu o escrevia. Começou com a morte repentina do meu cachorro. Eu sei que parece algo trivial, mas foi meu dia mais triste da minha vida. E, lá pelo final do livro, quando trato do que é o ser e a morte, minha mãe foi diagnosticada com câncer de pulmão e morreu em um mês e meio. Eu estava no quarto, ao lado dela, quando ela morreu, e ver um ser passar a não existência, o mesmo ser que gerou a minha existência, me fez enfrentar mais uma vez a estranheza da existência, a improbabilidade dela, e a surpresa que é nós existirmos e o mundo existir.
Jorge Pontual — Muitas pessoas procuram a religião ou mesmo alguma maneira filosófica de encarar a vida, em busca de consolo, certo, para conseguir suportar esse nada que está à nossa frente. Mas, mesmo acreditando que nós voltaremos ao nada, há um consolo, há uma maneira de aceitar isso?
Jim Holt —
 O interessante é que, quando eu ouvia diferentes opiniões ou diferentes atitudes diante da existência como um todo, algumas pessoas diziam que o universo é um lugar lindo e maravilhoso e que nós temos sorte de estar vivos. Se Deus fez o universo, ele é cheio de bondade. Ela pode estar escondido de nós, mas está lá. Já outras pessoas, como o diretor americano Woody Allen, consideram o universo apenas um lugar horrível, insuportável. Ele não acredita em Deus e acha que, quando morrer, acabou, é o nada. E há um pequeno oásis de alívio disso tudo para ele, que é reclamar. Ele diz que é assim que sobrevive a isso reclamando, fazendo filmes e fazendo sexo. É interessante que não só Woody Allen, mas também John Updike, escritor americano que morreu em 2009, era muito obcecado com a ideia do nada, da morte e de onde vem o universo. Ele também considerava o sexo uma maneira de se afastar, provavelmente não muito eficazmente, da terrível ideia da morte, então...
Jorge Pontual — O que foi que Updike lhe disse para explicar a existência? Está no livro.
Jim Holt —
 Updike, na verdade, acreditava na religião, de uma maneira muito sutil ou filosófica. E ele tinha essa imagem de Deus cercado de nada pensava que talvez Deus tivesse criado o mundo apenas para aliviar seu próprio tédio cósmico. Assim, o mundo seria um pouco como uma distração, algo que Deus criou para se divertir. É uma concepção muito bonita. Mas, em um dos livros de Updike, “Roger's Version”, todo o fim do livro trata da questão de por que há um universo, em vez do nada. E, em uma conversa em uma festa, um personagem faz esse relato virtuoso e puramente científico sobre como um universo como o nosso pode surgir do nada. A beleza dessa questão é que pode ser tratada de um ponto de vista religioso, como fonte intelectual de consolo, mas também pode ser tratada de um ponto de vista científico, de um ponto de vista literário ou mesmo místico. Se você for budista, por exemplo, e lhe perguntarem por que existe algo, em vez de nada, a resposta pode ser: “Tem certeza de que existe algo?” Para eles, este mundo parece real, talvez por sermos escravos de nossos desejos, que dão substância a algo que não tem substância, que é vazio, e a melhor coisa a fazer é acabar com o desejo, de modo que o mundo se dissolva no nada, você entre em estado de nirvana, que é o que mais se aproxima da felicidade. Um amigo meu disse que o nirvana é ter vida suficiente para gostar de estar morto. É um estado de quase nada. Então, há essa visão mística também. O incrível de refletir sobre o mistério da existência é que isso obriga você a analisar todas as culturas, todo o conhecimento humano. Não se pode deixar nada de fora, tem que ver o pacote inteiro, e eu fiz isso em um livro de 300 páginas.
Jorge Pontual — Você escreveu um livro sobre a filosofia das piadas. Qual é a melhor piada sobre o mistério da nossa existência?
Jim Holt —
 Eu tive um professor na Universidade de Columbia que era famoso por suas piadas filosóficas. Um dia, um aluno perguntou a ele: “Professor, por que há algo em vez de nada?” E ele disse: “Mesmo que não houvesse nada, você ainda estaria insatisfeito.” Essa não é ruim.
Jorge Pontual — Essa é boa.
Jim Holt —
 E é verdadeira. Os maiores mistérios e motivos de perplexidade suscitam nas pessoas o impulso da fazer piada. Há piadas sobre coisas horríveis, como o Holocausto. Uma maneira de os judeus lidarem com ele é imprimindo humor ao fato. Nós nos perguntamos que piada pode ser apropriada quando o assunto é algo tão horrível quanto o Holocausto, mas, para os judeus, é possível. E encarar com humor o mistério da existência também é algo nobre. Eu queria ter piadas melhores


POR QUE O MUNDO EXISTE?



Na década de 1970, para aplacar as inseguranças habituais da adolescência, Jim Holt mergulhou no existencialismo. E foi nas primeiras páginas de Introdução à metafísica, de Martin Heidegger, que ele se deparou com o mistério existencial que o fascina há mais de 40 anos: por que existe algo e não apenas o nada? 
Anos depois, uma tragédia pessoal levou Holt direto para a estrada. A missão: descobrir as pistas com grandes pensadores contemporâneos, como o escritor John Updike, o filósofo Adolf Grünbaum, o teólogo Richard Swinburne, o matemático Roger Penrose e o físico Andrei Linde. O resultado dessa jornada intelectual, que passa pelo famoso Café de Flore, reduto dos existencialistas em Paris, frequentado por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, é o lançamento Por que o mundo existe? — um mistério existencial.
Considerada por Heidegger a “mais profunda”, “abrangente” e “fundamental de todas as perguntas”, a questão divide opiniões ao longo da história. William James a identificava como a “mais sombria de toda a filosofia”. O astrofísico Sir Bernard Lovell observou que se deter nela pode “estraçalhar a mente de um indivíduo”. Já Arthur Schopenhauer ataca: “Quanto menos um homem é dotado do ponto de vista intelectual, menos intrigante e misteriosa lhe parece a própria existência. ”
Em termos conceituais, a pergunta por que o mundo existe? rima com por que eu existo? São esses, na visão de John Updike, os dois grandes mistérios existenciais. A ambivalência de Updike a respeito do ser foi canalizada para seu alter ego fictício, o romancista judeu Henry Bech, priápico, propenso ao desespero e sempre sofrendo de bloqueio criativo. [...] Já para Adolf Grünbaum, destacado pensador no terreno das sutilezas do espaço e do tempo que pode ser considerado o maior filósofo da ciência ainda vivo, essa pergunta não leva a Deus ou a coisa alguma. Dotado de implacável hostilidade à crença religiosa, Grünbaum a vê apenas como um pseudoproblema. [...] O jornalista, filósofo e matemático Jim Holt é categórico: não será possível entender o mundo até compreender por que ele existe e por que há um universo do qual fazemos parte. Na entrevista concedida ao programa Milênio, Holt explica sua grande obsessão e conta como se divertiu ao escrever o livro. “Fiz como se fosse uma história de detetive e fui atrás dos melhores suspeitos cósmicos, conversei com os maiores pensadores do mundo, e os fiz pensar alto. É ótimo ouvir um grande físico, filósofo, teólogo ou romancista pensando alto. Eles dizem as coisas mais extraordinárias. ”


quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O VELHO, O MENINO E O BURRO


Há muito, muito tempo, um velho convidou o seu neto para ir com ele à terra mais próxima vender o burro que tinha. Combinaram que partiriam no dia seguinte, logo pela manhã, para poderem chegar bem cedinho ao mercado. Seguiam a pé, pois o avô achava que venderia melhor o burro se ele chegasse com um ar pouco cansado. E assim partiram com o avô e o menino a andarem pela estrada fora ao lado do burro.
No caminho, cruzaram-se com algumas pessoas, que imediatamente começaram a troçar:
— Olhem aqueles é que são tolos. Têm um burro e vão a pé. O mais estúpido dos três não é quem se esperaria. O burro afinal não é nada burro.
O velho não gostou nada que troçassem dele e disse ao seu neto para se sentar em cima do burro. Seguiam caminho tranquilos quando, um pouco mais adiante, passaram por três mercadores.
—Olhem, olhem, mas o que é que temos aqui?!, disse um deles. — Respeita os mais velhos, rapaz. Desmonta e deixa o teu avô ir montado no burro, que já é muito velho para ir a pé. Tu, que tens as pernas fortes e novas, é que vais sentado no burro, e o teu avô, já velhinho, é que vai a pé?
Embora ainda não estivesse cansado de caminhar, o velho pediu ao neto para sair e montou ele no burro. Andaram apenas um pouco mais até passarem por algumas mulheres que também iam para o mercado.
— Olhem este velho — disse uma delas. — A pobrezinha da criança é que vai a pé e ele vai todo repimpado no burro. Que pouca sorte tu tens, meu menino…
O velho sentiu-se envergonhado uma vez mais, mas para se mostrar agradável pediu ao neto que subisse no burro. Assim iriam os dois montados em cima dele e parariam os comentários. O rapaz obedeceu e continuaram a viagem agora os dois montados no burro. Um pouco mais adiante, um grupo de pessoas interpelou-os com indignação:
— Mas será que quereis matar o burrinho? Pareceis mais capazes vós de carregar o burro do que o contrário.
O velho e rapaz desmontaram imediatamente. Passado um bocado, quase a chegarem ao mercado, gerou-se um enorme burburinho ao verem os dois carregando o burro atado num pau, que transportavam nos ombros de ambos. Juntou-se uma multidão para observar a cena que achavam muito estranha.
— Olhem estes doidos varridos. Eles é que são os burros do burro!
O velho já estava mesmo farto e exclamou zangado:
Do que observo me confundo!
Por mais que a gente tente agradar,
não consegue tapar
a boca do mundo.
E meu neto, que nos sirva de lição:
É mais tolo, quem dá ao mundo satisfação! 


sábado, 14 de dezembro de 2019

Santo Agostinho, o amor, o sexo e o pecado... Um mal entendido?

Centro Sèvres, em Paris, varre os clichês segundo os quais Agostinho teria feito a Igreja pagar por sua renúncia à sexualidade.
A reportagem é de Isabelle Francq e publicada no site da revista francesa La Vie, 09-05-2014. A tradução é de André Langer.





Embora esteja no centro das preocupações humanas, o amor não se mistura bem com a filosofia e, exceto Platão, poucos pensadores da Antiguidade fizeram dele um objeto de reflexão. Em Santo Agostinho, ao contrário, entre pecado e piedade, o amor é central. Para melhor demonstrar isso, essa grande figura da teologia que foi o primeiro a praticar a arte da autobiografia, detém-se sobre a sua experiência da paixão.
Antes da palestra que fará no festival Philosophia de Saint-Émilion, este ano dedicado ao amor, Dominique Salin, jesuíta e especialista em Agostinho, fala-nos sobre este grande pensador, ainda desconhecido, do Ocidente.

Um ex-mulherengo?
Um Don Juan arrependido, fulminado pela graça aos 33 anos, Agostinho (354-430) teria feito o cristianismo pagar sua própria renúncia à carne. Quando falamos de Santo Agostinho e do amor, devemos imediatamente abandonar esse clichê. No início do século V, seria ele, o bispo de Hipona (atual Annaba, na Argélia), o responsável pela doutrina cristã da sexualidade marcada pela proibição, pelo sentimento de culpa. Afinal, não é Agostinho o inventor do pecado original? Este pecado não vai estar em parte relacionado à sexualidade? Para muitos, a culpa de Adão e Eva foi ter comido da maçã, e de nos ter transmitido geneticamente, isto é, sexualmente, um desejo ilimitado por essa fruta metafórica, tão conhecida. A realidade é mais complexa e bela, filosófica e poeticamente.
“Eu me esbanjava e ardia nas minhas fornicações.” É a partir dessas observações que se esculpiu em Agostinho um costume e arrependido debochado. E não deixamos de notar que a sua primeira decisão, após sua conversão aos 33 anos, foi despedir sua concubina. A violência com que ele fustiga, em suas Confissões, o pecador que ele era, seria para alguns o sinal de uma forma doentia de obsessão sexual. As extravagâncias das quais Agostinho se acusa dizem respeito, porém, principalmente às férias forçadas que ele passa em Tagaste (Argélia), sua cidade natal, em torno dos 15 anos. Sendo seu pai um agricultor pobre, teve que esperar por uma bolsa para fazer seus estudos de retórica. Para passar o tempo, ele ia à missa aos domingos para aí arrastar as meninas (Confissões III, 3).
Essas loucuras não duraram muito. Aos 17 anos, estudante em Cartago, ele se casa com a mulher da sua vida, a mãe do seu filho, a quem será fiel durante 15 anos. Ele rompe com essa mulher que ele amava um ano antes da sua conversão, isto é, da sua decisão de se fazer batizar e tornar-se monge. Ruptura por razões de arrivismo. Na verdade, instalado na corte de Milão, orador titular do imperador – um adolescente sob a regência da sua mãe –, está prestes a ser nomeado governador de uma província do Império, ele atinge o topo das honras, mas não tem sorte. Ele termina com sua noiva para se prometer a uma rica herdeira. No entanto, ela tinha apenas 12 anos. A idade legal era 14 anos. Ele deve, portanto, esperar.
"(...) Incapaz de suportar o prazo imposto (dois anos antes de conseguir o que eu pedi), e menos afeito ao casamento que escravo da paixão, eu fui ao encontro de outra mulher; não era, certamente, para me casar, mas para alimentar a doença da minha alma e fazê-la perdurar, sob o olhar atento do Hábito, e isso até a chegada da esposa.” Cego da dependência do seu impulso sexual, a vergonha que aqui expressa é um ponto decisivo da concepção de amor de Agostinho. De fato, até esse dia de agosto 386 quando ouve uma voz vinda do além e decide fazer-se batizar e tornar-se monge, ele se julgou incapaz de viver na continência. Isso era para ele um sofrimento, uma frustração.
No início dos estudos, a leitura de Cícero e do estoicismo havia semeado nele o desejo de tornar-se um sábio, isto é, um santo. A valorização da continência não é uma invenção cristã. Ela não é dominante na sabedoria greco-romana pagã, mas também não está totalmente ausente; Plotino, o grande neoplatônico pagão, era celibatário. Isso não foi suficientemente enfatizado: o ideal de santidade que Agostinho se fixou aos 16 anos contemplava a continência. Mas, no momento em que ele está apaixonado, casa-se. A partir de então, sua vida conjugal é marcada por uma consciência deformada. Ele enfatiza que o fato de estar casado impediu-o de crescer em sua vida espiritual. Tudo muda quando ele aceita o que sente ser um convite de Cristo e de São Paulo para "tornar-se eunuco pelo Reino de Deus". Ele, finalmente, encontra a paz do coração, escreveu. Certamente, a continência é difícil. Mas ele nunca se arrependerá disso.

No princípio, o desejo
Para Agostinho, o amor ultrapassa o amor sexual. Amar é, em latim, appetere ("um apetite"); é motus ad aliquid, “um movimento em direção a algo”, ou alguém. O amor é desejo. Ele tem essa frase maravilhosa: “O amor estende o desejo e o desejo estende o amor”. O amor é tão natural ao homem quanto o desejo. É o desejo que faz o ser humano. O animal é conduzido por seus reflexos, instintos e necessidades. O homem também, mas ele é capaz de adiar a satisfação em vista de um prazer (delectatio) superior.
Ser de desejo, o homem é, portanto, marcado pela falta. Atrás de qual delectatio correr? O bem supremo, a "vida feliz", a "bem-aventurança", responde Agostinho. O estado psicológico que lhe corresponde é a alegria. Ele diz: o homem é feito para a alegria e Deus é a alegria do homem. Assim, buscando sua delectatio, é Deus que o homem procura, quer saiba ou não. “Tu nos fizeste para ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto (inquietum) até que descanse em ti (quiescat in te).”
O desejo, infinito, de absoluto é, no homem, a marca de fábrica de Deus. O desejo de Deus, o amor de Deus, é o motor do homem. Quando ele pensa em procurar a segurança, o prazer, a tranquilidade, a serenidade, a justiça, quando ele pensa amar o dinheiro, as mulheres, o sucesso, na verdade, está buscando a Deus, diz Agostinho. A glória ou a alegria nunca serão suficientes. O desejo, ou melhor, a necessidade, incessantemente renascerá. Mas na maioria das vezes, o nosso desejo erra de alvo. A tendência do indivíduo de se preferir a si mesmo aos outros e de ver nas outras criaturas o meio de satisfazer suas necessidades leva, na teologia de Agostinho, a um nome fatal: o pecado original. Ele deforma o amor em amor de si, em vez de ser, em primeiro lugar, amor de Deus.

Os dois amores
Assim se esboça a antropologia agostiniana. Há apenas um amor, porque o desejo é um. Mas esse amor pode assumir duas formas incompatíveis de acordo com o objeto ao qual ele se dirige. Agostinho escreveu: "Quem ama quer formar um com quem ama”. Em consequência: “O ser humano torna-se o que ele ama: aquele que ama a terra, torna-se terra; aquele que ama o Deus eterno irá compartilhar da eternidade com Deus”. Este é o tema das duas cidades – terrestre e celeste – que ele formula em A Cidade de Deus (Volume 2, XIV, 28).
A chave da história humana é a oposição entre o amor que dá a primazia a Deus e aquele que ama, em primeiro lugar, a si mesmo, ao passo que ele ama as criaturas pelas vantagens que disso pode obter. No primeiro caso, o amor é mediado pelo amor de Deus: eu amo as criaturas com um amor que as respeita, que me respeita e que me permite respeitar a Deus. Eu O respeito em suas criaturas, através delas. No segundo caso, eu não respeito as criaturas, nem Deus nelas. Eu as amo pelos interesses que posso obter, pelo uso que posso fazer delas. E eu instrumentalizo o próprio Deus em vista do meu benefício. A primeira forma de amor Agostinho chamou de amor ou caritas ou dilectio. A outra, que instrumentaliza a Criação e o próprio Deus, ele a chama de cupiditas ou concupiscentia ou libido.

O “Pecado original”
O ideal seria viver permanentemente do amor e da caritas: “Amemo-nos uns aos outros!” Mas o mundo é marcado pelo mal, pelo sofrimento, pela concupiscência – que Agostinho chamou, na linha de São Paulo, de pecado. Desde a sua concepção, o ser humano é afetado pela violência, pela injustiça e pelo sofrimento. Ele sofrerá as consequências sendo ele próprio conduzido à violência, à injustiça, à ganância e à falsidade. Porque seus antepassados estão marcados por isso, desde Adão, desde as origens. Pecado original, universal; pecado das origens, que não poupa ninguém. Será preciso ter a ingenuidade de Jean-Jacques Rousseau para imaginar que a criança nasce pura e inocente. Freud, por sua vez, sobre este ponto, dá razão a Agostinho e à Bíblia.
Agostinho não é o inventor do pecado original. Ele o encontrou em São Paulo. Ele formalizou a doutrina e a endureceu na sua luta contra o pelagianismo, no final da sua vida. Para o herege Pelágio, o homem em si mesmo é saudável. Ele encontra em si mesmo os recursos necessários para alcançar a virtude, a santidade e a união com Deus. Agostinho respondeu-lhe que o homem comete o mal que não gostaria de cometer e não consegue praticar o bem que gostaria. O pecado é um mistério que nos ultrapassa. Somente Cristo pode iluminar o homem e guiá-lo para a luz.
Essa visão pessimista da natureza humana se agrava na aurora dos tempos modernos, quando Lutero e os jansenistas releem Agostinho e endurecem e caricaturizam seu pensamento. "Como o coração do homem é oco e cheio de lixo!", exclamou Pascal (Pensées, Sellier181, Lafuma 148). Mas podemos ser cristãos sem ser jansenistas. É verdade que o pecado original foi muitas vezes apresentado nos catecismos como uma doença sexualmente transmissível desde Adão. Daí a dizer que o ato de procriação é sujo, é apenas um passo. Dizia-se que fazer amor no casamento, era um pecado permitido. Devemos reconhecer que a concepção de sexualidade de Agostinho inclinou-se para esse lado. O caráter, às vezes, incontrolado da pulsão sexual parecia-lhe uma desordem; uma forma de violência desordenada que não estava nos planos de Deus. Ele via nisso um sintoma e uma consequência do pecado original.

"Ama e faz o que quiser!"
Para Agostinho, pode-se amar um homem ou uma mulher, a música, seu trabalho, seus filhos, seus amigos e também amar a Deus. Pode-se amar a Deus como se ama a sua esposa? A resposta encontra-se nas Confissões X, livro 6. Ele descreveu com as mesmas palavras o amor humano e o amor divino. Elas tomam um sentido metafórico quando se trata de Deus. Elas são deficientes também quando se trata do amor. Para dizer o amor, a linguagem menos inadequada é a da poesia, da música: da imagem, da metáfora. A linguagem poética não pretende dizer o indizível, divino ou humano, mas apenas sugeri-lo. É dessa maneira que toca o nosso coração.
Há em mim mais do que eu mesmo. Há em mim alguém outro, há em mim um Outro. Arthur Rimbaud disse-o melhor que ninguém: “‘Eu’ é um outro”. Este outro nele, Agostinho chama de “homem interior”: é ele que toma Deus em seus braços, é ele que Deus toma em seus braços. Eles são um, como o homem e a mulher. É a maneira de dizer o que o Mestre Eckhart afirmará no século XIV: “Deus e eu somos um, somos semelhantes, somos iguais”. Nesse nível, o mistério de Deus e o mistério do homem são o mesmo. Falar de Deus e falar do homem é a mesma coisa.
"Fale-me sobre o amor...". Tudo bem, mas como saber se é realmente o amor que me faz agir? Que garantia eu tenho contra os erros e as ilusões? Para o Evangelho, o amor é julgado pelos frutos. Agostinho não nega isso, e sua homilia sobre a Primeira Epístola de João (7,7-8) mostra como ele é sensível à complexidade das situações. Mas, para ele, é o amor que pode e deve ser a regra da ação. Sempre o Amor.