quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O VELHO, O MENINO E O BURRO


Há muito, muito tempo, um velho convidou o seu neto para ir com ele à terra mais próxima vender o burro que tinha. Combinaram que partiriam no dia seguinte, logo pela manhã, para poderem chegar bem cedinho ao mercado. Seguiam a pé, pois o avô achava que venderia melhor o burro se ele chegasse com um ar pouco cansado. E assim partiram com o avô e o menino a andarem pela estrada fora ao lado do burro.
No caminho, cruzaram-se com algumas pessoas, que imediatamente começaram a troçar:
— Olhem aqueles é que são tolos. Têm um burro e vão a pé. O mais estúpido dos três não é quem se esperaria. O burro afinal não é nada burro.
O velho não gostou nada que troçassem dele e disse ao seu neto para se sentar em cima do burro. Seguiam caminho tranquilos quando, um pouco mais adiante, passaram por três mercadores.
—Olhem, olhem, mas o que é que temos aqui?!, disse um deles. — Respeita os mais velhos, rapaz. Desmonta e deixa o teu avô ir montado no burro, que já é muito velho para ir a pé. Tu, que tens as pernas fortes e novas, é que vais sentado no burro, e o teu avô, já velhinho, é que vai a pé?
Embora ainda não estivesse cansado de caminhar, o velho pediu ao neto para sair e montou ele no burro. Andaram apenas um pouco mais até passarem por algumas mulheres que também iam para o mercado.
— Olhem este velho — disse uma delas. — A pobrezinha da criança é que vai a pé e ele vai todo repimpado no burro. Que pouca sorte tu tens, meu menino…
O velho sentiu-se envergonhado uma vez mais, mas para se mostrar agradável pediu ao neto que subisse no burro. Assim iriam os dois montados em cima dele e parariam os comentários. O rapaz obedeceu e continuaram a viagem agora os dois montados no burro. Um pouco mais adiante, um grupo de pessoas interpelou-os com indignação:
— Mas será que quereis matar o burrinho? Pareceis mais capazes vós de carregar o burro do que o contrário.
O velho e rapaz desmontaram imediatamente. Passado um bocado, quase a chegarem ao mercado, gerou-se um enorme burburinho ao verem os dois carregando o burro atado num pau, que transportavam nos ombros de ambos. Juntou-se uma multidão para observar a cena que achavam muito estranha.
— Olhem estes doidos varridos. Eles é que são os burros do burro!
O velho já estava mesmo farto e exclamou zangado:
Do que observo me confundo!
Por mais que a gente tente agradar,
não consegue tapar
a boca do mundo.
E meu neto, que nos sirva de lição:
É mais tolo, quem dá ao mundo satisfação! 


sábado, 14 de dezembro de 2019

Santo Agostinho, o amor, o sexo e o pecado... Um mal entendido?

Centro Sèvres, em Paris, varre os clichês segundo os quais Agostinho teria feito a Igreja pagar por sua renúncia à sexualidade.
A reportagem é de Isabelle Francq e publicada no site da revista francesa La Vie, 09-05-2014. A tradução é de André Langer.





Embora esteja no centro das preocupações humanas, o amor não se mistura bem com a filosofia e, exceto Platão, poucos pensadores da Antiguidade fizeram dele um objeto de reflexão. Em Santo Agostinho, ao contrário, entre pecado e piedade, o amor é central. Para melhor demonstrar isso, essa grande figura da teologia que foi o primeiro a praticar a arte da autobiografia, detém-se sobre a sua experiência da paixão.
Antes da palestra que fará no festival Philosophia de Saint-Émilion, este ano dedicado ao amor, Dominique Salin, jesuíta e especialista em Agostinho, fala-nos sobre este grande pensador, ainda desconhecido, do Ocidente.

Um ex-mulherengo?
Um Don Juan arrependido, fulminado pela graça aos 33 anos, Agostinho (354-430) teria feito o cristianismo pagar sua própria renúncia à carne. Quando falamos de Santo Agostinho e do amor, devemos imediatamente abandonar esse clichê. No início do século V, seria ele, o bispo de Hipona (atual Annaba, na Argélia), o responsável pela doutrina cristã da sexualidade marcada pela proibição, pelo sentimento de culpa. Afinal, não é Agostinho o inventor do pecado original? Este pecado não vai estar em parte relacionado à sexualidade? Para muitos, a culpa de Adão e Eva foi ter comido da maçã, e de nos ter transmitido geneticamente, isto é, sexualmente, um desejo ilimitado por essa fruta metafórica, tão conhecida. A realidade é mais complexa e bela, filosófica e poeticamente.
“Eu me esbanjava e ardia nas minhas fornicações.” É a partir dessas observações que se esculpiu em Agostinho um costume e arrependido debochado. E não deixamos de notar que a sua primeira decisão, após sua conversão aos 33 anos, foi despedir sua concubina. A violência com que ele fustiga, em suas Confissões, o pecador que ele era, seria para alguns o sinal de uma forma doentia de obsessão sexual. As extravagâncias das quais Agostinho se acusa dizem respeito, porém, principalmente às férias forçadas que ele passa em Tagaste (Argélia), sua cidade natal, em torno dos 15 anos. Sendo seu pai um agricultor pobre, teve que esperar por uma bolsa para fazer seus estudos de retórica. Para passar o tempo, ele ia à missa aos domingos para aí arrastar as meninas (Confissões III, 3).
Essas loucuras não duraram muito. Aos 17 anos, estudante em Cartago, ele se casa com a mulher da sua vida, a mãe do seu filho, a quem será fiel durante 15 anos. Ele rompe com essa mulher que ele amava um ano antes da sua conversão, isto é, da sua decisão de se fazer batizar e tornar-se monge. Ruptura por razões de arrivismo. Na verdade, instalado na corte de Milão, orador titular do imperador – um adolescente sob a regência da sua mãe –, está prestes a ser nomeado governador de uma província do Império, ele atinge o topo das honras, mas não tem sorte. Ele termina com sua noiva para se prometer a uma rica herdeira. No entanto, ela tinha apenas 12 anos. A idade legal era 14 anos. Ele deve, portanto, esperar.
"(...) Incapaz de suportar o prazo imposto (dois anos antes de conseguir o que eu pedi), e menos afeito ao casamento que escravo da paixão, eu fui ao encontro de outra mulher; não era, certamente, para me casar, mas para alimentar a doença da minha alma e fazê-la perdurar, sob o olhar atento do Hábito, e isso até a chegada da esposa.” Cego da dependência do seu impulso sexual, a vergonha que aqui expressa é um ponto decisivo da concepção de amor de Agostinho. De fato, até esse dia de agosto 386 quando ouve uma voz vinda do além e decide fazer-se batizar e tornar-se monge, ele se julgou incapaz de viver na continência. Isso era para ele um sofrimento, uma frustração.
No início dos estudos, a leitura de Cícero e do estoicismo havia semeado nele o desejo de tornar-se um sábio, isto é, um santo. A valorização da continência não é uma invenção cristã. Ela não é dominante na sabedoria greco-romana pagã, mas também não está totalmente ausente; Plotino, o grande neoplatônico pagão, era celibatário. Isso não foi suficientemente enfatizado: o ideal de santidade que Agostinho se fixou aos 16 anos contemplava a continência. Mas, no momento em que ele está apaixonado, casa-se. A partir de então, sua vida conjugal é marcada por uma consciência deformada. Ele enfatiza que o fato de estar casado impediu-o de crescer em sua vida espiritual. Tudo muda quando ele aceita o que sente ser um convite de Cristo e de São Paulo para "tornar-se eunuco pelo Reino de Deus". Ele, finalmente, encontra a paz do coração, escreveu. Certamente, a continência é difícil. Mas ele nunca se arrependerá disso.

No princípio, o desejo
Para Agostinho, o amor ultrapassa o amor sexual. Amar é, em latim, appetere ("um apetite"); é motus ad aliquid, “um movimento em direção a algo”, ou alguém. O amor é desejo. Ele tem essa frase maravilhosa: “O amor estende o desejo e o desejo estende o amor”. O amor é tão natural ao homem quanto o desejo. É o desejo que faz o ser humano. O animal é conduzido por seus reflexos, instintos e necessidades. O homem também, mas ele é capaz de adiar a satisfação em vista de um prazer (delectatio) superior.
Ser de desejo, o homem é, portanto, marcado pela falta. Atrás de qual delectatio correr? O bem supremo, a "vida feliz", a "bem-aventurança", responde Agostinho. O estado psicológico que lhe corresponde é a alegria. Ele diz: o homem é feito para a alegria e Deus é a alegria do homem. Assim, buscando sua delectatio, é Deus que o homem procura, quer saiba ou não. “Tu nos fizeste para ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto (inquietum) até que descanse em ti (quiescat in te).”
O desejo, infinito, de absoluto é, no homem, a marca de fábrica de Deus. O desejo de Deus, o amor de Deus, é o motor do homem. Quando ele pensa em procurar a segurança, o prazer, a tranquilidade, a serenidade, a justiça, quando ele pensa amar o dinheiro, as mulheres, o sucesso, na verdade, está buscando a Deus, diz Agostinho. A glória ou a alegria nunca serão suficientes. O desejo, ou melhor, a necessidade, incessantemente renascerá. Mas na maioria das vezes, o nosso desejo erra de alvo. A tendência do indivíduo de se preferir a si mesmo aos outros e de ver nas outras criaturas o meio de satisfazer suas necessidades leva, na teologia de Agostinho, a um nome fatal: o pecado original. Ele deforma o amor em amor de si, em vez de ser, em primeiro lugar, amor de Deus.

Os dois amores
Assim se esboça a antropologia agostiniana. Há apenas um amor, porque o desejo é um. Mas esse amor pode assumir duas formas incompatíveis de acordo com o objeto ao qual ele se dirige. Agostinho escreveu: "Quem ama quer formar um com quem ama”. Em consequência: “O ser humano torna-se o que ele ama: aquele que ama a terra, torna-se terra; aquele que ama o Deus eterno irá compartilhar da eternidade com Deus”. Este é o tema das duas cidades – terrestre e celeste – que ele formula em A Cidade de Deus (Volume 2, XIV, 28).
A chave da história humana é a oposição entre o amor que dá a primazia a Deus e aquele que ama, em primeiro lugar, a si mesmo, ao passo que ele ama as criaturas pelas vantagens que disso pode obter. No primeiro caso, o amor é mediado pelo amor de Deus: eu amo as criaturas com um amor que as respeita, que me respeita e que me permite respeitar a Deus. Eu O respeito em suas criaturas, através delas. No segundo caso, eu não respeito as criaturas, nem Deus nelas. Eu as amo pelos interesses que posso obter, pelo uso que posso fazer delas. E eu instrumentalizo o próprio Deus em vista do meu benefício. A primeira forma de amor Agostinho chamou de amor ou caritas ou dilectio. A outra, que instrumentaliza a Criação e o próprio Deus, ele a chama de cupiditas ou concupiscentia ou libido.

O “Pecado original”
O ideal seria viver permanentemente do amor e da caritas: “Amemo-nos uns aos outros!” Mas o mundo é marcado pelo mal, pelo sofrimento, pela concupiscência – que Agostinho chamou, na linha de São Paulo, de pecado. Desde a sua concepção, o ser humano é afetado pela violência, pela injustiça e pelo sofrimento. Ele sofrerá as consequências sendo ele próprio conduzido à violência, à injustiça, à ganância e à falsidade. Porque seus antepassados estão marcados por isso, desde Adão, desde as origens. Pecado original, universal; pecado das origens, que não poupa ninguém. Será preciso ter a ingenuidade de Jean-Jacques Rousseau para imaginar que a criança nasce pura e inocente. Freud, por sua vez, sobre este ponto, dá razão a Agostinho e à Bíblia.
Agostinho não é o inventor do pecado original. Ele o encontrou em São Paulo. Ele formalizou a doutrina e a endureceu na sua luta contra o pelagianismo, no final da sua vida. Para o herege Pelágio, o homem em si mesmo é saudável. Ele encontra em si mesmo os recursos necessários para alcançar a virtude, a santidade e a união com Deus. Agostinho respondeu-lhe que o homem comete o mal que não gostaria de cometer e não consegue praticar o bem que gostaria. O pecado é um mistério que nos ultrapassa. Somente Cristo pode iluminar o homem e guiá-lo para a luz.
Essa visão pessimista da natureza humana se agrava na aurora dos tempos modernos, quando Lutero e os jansenistas releem Agostinho e endurecem e caricaturizam seu pensamento. "Como o coração do homem é oco e cheio de lixo!", exclamou Pascal (Pensées, Sellier181, Lafuma 148). Mas podemos ser cristãos sem ser jansenistas. É verdade que o pecado original foi muitas vezes apresentado nos catecismos como uma doença sexualmente transmissível desde Adão. Daí a dizer que o ato de procriação é sujo, é apenas um passo. Dizia-se que fazer amor no casamento, era um pecado permitido. Devemos reconhecer que a concepção de sexualidade de Agostinho inclinou-se para esse lado. O caráter, às vezes, incontrolado da pulsão sexual parecia-lhe uma desordem; uma forma de violência desordenada que não estava nos planos de Deus. Ele via nisso um sintoma e uma consequência do pecado original.

"Ama e faz o que quiser!"
Para Agostinho, pode-se amar um homem ou uma mulher, a música, seu trabalho, seus filhos, seus amigos e também amar a Deus. Pode-se amar a Deus como se ama a sua esposa? A resposta encontra-se nas Confissões X, livro 6. Ele descreveu com as mesmas palavras o amor humano e o amor divino. Elas tomam um sentido metafórico quando se trata de Deus. Elas são deficientes também quando se trata do amor. Para dizer o amor, a linguagem menos inadequada é a da poesia, da música: da imagem, da metáfora. A linguagem poética não pretende dizer o indizível, divino ou humano, mas apenas sugeri-lo. É dessa maneira que toca o nosso coração.
Há em mim mais do que eu mesmo. Há em mim alguém outro, há em mim um Outro. Arthur Rimbaud disse-o melhor que ninguém: “‘Eu’ é um outro”. Este outro nele, Agostinho chama de “homem interior”: é ele que toma Deus em seus braços, é ele que Deus toma em seus braços. Eles são um, como o homem e a mulher. É a maneira de dizer o que o Mestre Eckhart afirmará no século XIV: “Deus e eu somos um, somos semelhantes, somos iguais”. Nesse nível, o mistério de Deus e o mistério do homem são o mesmo. Falar de Deus e falar do homem é a mesma coisa.
"Fale-me sobre o amor...". Tudo bem, mas como saber se é realmente o amor que me faz agir? Que garantia eu tenho contra os erros e as ilusões? Para o Evangelho, o amor é julgado pelos frutos. Agostinho não nega isso, e sua homilia sobre a Primeira Epístola de João (7,7-8) mostra como ele é sensível à complexidade das situações. Mas, para ele, é o amor que pode e deve ser a regra da ação. Sempre o Amor.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

EPICURO – CARTA A MENECEU – SOBRE A FELICIDADE


1 O Estudo da Filosofia
Meneceu
Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou, ou que já passou a hora de ser feliz.
Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la.
Pratica e cultiva então aqueles ensinamentos que sempre te transmiti, na certeza de que eles constituem os elementos fundamentais para uma vida feliz.
2 Os Deuses
Em primeiro lugar, considerando a divindade como um ente imortal e bemaventurado, como sugere a percepção comum de divindade, não atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem inadequado à sua bem-aventurança; pensa a respeito dela tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade.
Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles faz a maioria das pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses. Ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria.
Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas próprias virtudes, eles só aceitam a convivência com seus semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente deles.
3 A Morte
Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo o bem e todo o mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade.
Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida.
O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; viver não é um fardo e não-viver não é um mal.
4 Saber Viver
Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve.
Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de agradável para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em honestamente viver e em honestamente morrer.
Mas pior ainda é aquele que diz: bom seria não ter nascido, mas uma vez nascido, transpor o mais depressa possível as portas do Hades.
Se ele diz isso com plena convicção, por que não vai desta vida? Pois é livre para fazê-lo, se for esse realmente seu desejo; mas se o disse por brincadeira, foi frívolo em falar de coisas que brincadeira não admitem.
Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não-nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais.
5 Os Desejos e a Tranquilidade de Espírito
Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo.
Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda a tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo, não tendo que ir em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir.
6 O Prazer
É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz.
Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha ou recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor.
Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo.
Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.
7 A Simplicidade
Consideramos ainda a autos suficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.
Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita.
Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portanto, não só é conveniente para a saúde, como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida: nos períodos em que conseguimos levar uma existência rica, predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar sem temor as vicissitudes da sorte.
8 A Temperança e a Prudência
Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma.
Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos.
De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade.
Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas.
9 O Homem Sábio
Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente acerca dos deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou só nos causa sofrimentos leves? Que nega o destino, apresentado por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso, instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanham a censura e o louvor?
Mais vale aceitar o mito dos deuses, do que ser escravo do destino dos naturalistas: o mito pelo menos nos oferece a esperança do perdão dos deuses através das homenagens que lhes prestamos, ao passo que o destino é uma necessidade inexorável.
Entendendo que a sorte não é uma divindade, como a maioria das pessoas acredita (pois um deus não faz nada ao acaso), nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam fundamentais para uma vida feliz, mas, sim, que dela pode surgir o início de grandes bens e de grandes males. A seu ver, é preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom projeto não chegue a bom termo, do que chegue a ter êxito um projeto mau.
10 Meditação
Medita, pois, todas essas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente a um mortal o homem que vive entre bens imortais.