SUBSÍDIOS PARA UMA ÉTICA DA RESPONSABILIDADE EM ENFERMAGEM
Maria de Lourdes de Souza
Vicente Volnei de Bona
Sartor
Marta Lenise do Prado
(Disponível em http://www.scielo.br/pdf/tce/v14n1/a10v14n1
Acesso em 06.02.15 - Às 19h08m [Modificado])
INTRODUÇÃO
A ética propõe-se a compreender os critérios e os valores que
orientam o julgamento da ação humana em suas múltiplas atividades,
principalmente aquelas que dizem respeito ao trabalho e à vida humana associada.
Ética aqui tratada como disciplina. Neste sentido, se refere à reflexão crítica
sobre o comportamento humano, interpreta, discute, problematiza e investiga valores
e princípios. Procura respostas ao que “deve ser feito”, e não ao “que pode ser
feito” do ponto de vista das razões de se fazer ou deixar de fazer, de aprovar
ou desaprovar algo, do que é bom e do que é o mal, do justo e do injusto.
Ao longo da formação das sociedades, pessoas, organizações,
associações, sindicatos, entidades representativas das ocupações sociais
(dentre outros: médicos, economistas, administradores, engenheiros, assistentes
sociais, enfermeiros), as categorias de trabalho e a classe política têm
estabelecido formas de conduta capazes de avaliarem se suas ações são ou não
corretas. Ou seja, normas valorativas de conduta. Formas de conduta essas que
dizem respeito à própria condição de existência individual e social. Muitas são
as respostas para esta questão, no âmbito da Enfermagem, várias aplicações
podem ser visualizadas examinando-as em suas principais correntes de pensamento
e nos princípios eleitos.
Avaliar se uma ação é correta ou não, varia de acordo com a
escola filosófica que a postula, bem como os argumentos pelas quais uma ação
deve ou não ser aceita em certo tempo e em determinada sociedade. Variar, de
acordo com escolas e argumentos, no entanto, não nos induz necessariamente ao relativismo
de que “hoje não pode e amanhã já pode” segundo as paixões favoráveis e
momentâneas, principalmente no exercício do poder público. Ao contrário, há
consciência da necessidade da reflexão de quais valores devem ser agregados nas
atividades humanas.
Nesta reflexão, dar-se-á proeminência à ética normativa,
pretendendo responder à incitante pergunta “o que devemos fazer” no âmbito do
cuidar em Enfermagem e na vida humana associada saudável e progressista. O
caráter predominante diz respeito à ética aplicada para resolução de problemas
éticos cotidianos, isto é, procura resolver problemas práticos de acordo com os
princípios da ética normativa. A ética normativa, em geral, não se detém em
apenas numa escola ética na análise e no exame dos procedimentos de uma ação
correta ou incorreta. Ela se vale das diversas éticas, e suas variações, como:
a utilitarista – avaliação das consequências – bem como da deontológica –
avaliação a partir do dever.
CONTEXTUALIZAÇÃO
O cuidado manifesta-se na preservação com o melhor potencial
saudável da espécie humana e depende de uma concepção ética que contemple a
vida como um bem valioso em si. Por ser um conceito de amplo espectro, cuidar
incorpora diversos significados por vezes indefinidos e confusos. Ora quer
dizer solidarizar-se, evocando um certo tipo de relacionamento compartilhado
entre cidadãos em comunidades, ora, dependendo das circunstâncias e da doutrina
adotada, transmite uma noção de obrigação, dever e compromisso social num
empreendimento compartilhado. Nessas duas acepções, cuidar implica colocar-se
no lugar do outro, geralmente em situações desvantajosas, quer na dimensão
pessoal quer na social.
O cuidado em Enfermagem, na concepção de colocar-se no lugar do
outro, aproxima-se dos fundamentos do humanismo latino ao caracterizar a
humanidade do homem pela sua capacidade de colaboração para com o próximo e sua
utilidade às demais pessoas. Nesta concepção, prestar serviços quer na dimensão
pessoal quer na social é uma das virtudes mais dignas entre os homens. Assim,
compartilhar com as demais pessoas é uma exigência dos humanistas, para os
quais o homo faber jamais se dissociou do bem coletivo, ou seja, do
cuidado de enfermagem. Convém destacar que o cuidado não é uma atitude ou um
ato em si mesmo. É uma concepção da qual derivam sentimentos, atitudes e ações,
como vontades, desejos, inclinações e impulsos. O cuidado reflete uma atitude do
homem perante o mundo, perante os outros, perante si mesmo e perante a
existência em geral. O cuidado significa desvelo, solicitude, diligência, zelo,
atenção, e se concretiza no contexto das relações sociais. Cuidamos quando
estabelecemos relações de respeito à autonomia, à individualidade e aos
direitos dos seres humanos. Mas se todos cuidam, a que nos referimos quando
falamos em cuidado de Enfermagem? O cuidado, particularmente no que se refere
às pessoas, tem sido apontado como o objeto epistemológico da Enfermagem. É um
modo de estar com o outro, no que se refere a questões especiais da vida das
pessoas, dentre estas a promoção e a recuperação da saúde, o nascimento e a
própria morte.
A ideia de ajudar os outros na solução de problemas ou de um
indivíduo colocar-se no lugar do outro, na maioria das sociedades, ainda
permanece válida, como referência e conteúdo básico da noção de cuidado em
Enfermagem no século XXI, cujo fundamento é o de integrar as pessoas em torno
do bem comum e manter o elo social. Nesse sentido, cuidar e solidarizar-se
significam comprometimento e engajamento político-cultural, prevenindo rupturas
da e na sociedade e contribuindo para sua superação. Nesta linha de raciocínio,
os temas que traduzem o comprometimento e o engajamento social se referem,
basicamente, à preservação:
a)
da espécie humana, envolvendo a compaixão e a ternura;
b)
do social e da política, entendendo a diversidade de convívio democrático em
ambientes político-culturais diferentes;
c)
da cultura global, compreendendo a pluralidade cultural e interétnica;
d)
da vida ecológica e cosmológica, participando da sustentabilidade e do cuidado
para com as futuras gerações.
A noção subjacente do engajamento e do comprometimento considera
a atividade do cuidado de Enfermagem valiosa por si mesma, para diferenciar-se do
cuidado como função instrumental no âmbito das ocupações. O cuidado é parte
integrante do processo de sobrevivência da vida humana associada. Dessa noção
advém o entendimento do valor intrínseco da vida, que ocupa um lugar central no
conjunto dos valores da humanidade.
O valor intrínseco da vida, bem como sua centralidade no
conjunto de valores da humanidade, abarca outras instâncias da vida humana,
animal e vegetal, pois quaisquer formas e/ou estados da vida transmitem a ideia
de algo valioso. O sentido do que seja valioso, em geral, encontra múltiplas
interpretações éticas. Uma das formas de interpretar o sentido valioso da vida
consiste categorizá-lo em instrumental, subjetivo e intrínseco.
Vida humana como valor instrumental diz
respeito o quanto a vida de cada um serve aos interesses das demais pessoas.
Algo é instrumentalmente importante se seu valor depender de sua utilidade e de
sua capacidade para ajudar as pessoas a obter o que desejam, tal qual o
dinheiro, os medicamentos, entre outros. Caso contrário, são simplesmente bens
disponíveis sem utilidade. São instrumentais valiosos para a pessoa em particular.
Ou seja, o quanto a qualidade e a riqueza de uma vida saudável e empreendedora
sugere o bem-estar de outras. O aspecto da instrumentalidade sugere admiração e
desejo de adquirir o mesmo para si por meio de um esforço baseado em seu
próprio mérito. Neste sentido, a competição é saudável, pois uma característica
fundamental dos seres humanos consiste em realizar sua natureza numa situação
de livre união social com outros indivíduos.
Vida humana como valor subjetivo refere-se
o quanto a pessoa mede seu valor para ela mesma, ou seja, em termos de até que
ponto ela quer esta vida e até que ponto estar vivo é bom para cada pessoa.
Inclui-se, aqui, o feto por não ter condições físicas, morais e intelectuais
para fazer seu plano racional de vida. Observe-se que cada sociedade poderá
incluir diferentes entes sociais, permanente ou temporariamente, nessa
condição.
Vida humana como valor intrínseco refere-se
ao valor subjetivo que uma vida tem para a pessoa de cuja vida se trata.
Parte-se do pressuposto de que há um desejo dos homens em tratar uns aos outros
não apenas como meios, mas como finalidades em si mesmos.
Desse raciocínio, o instrumental geralmente se associa à
subjetividade da pessoa, uma vez que só vale para aquela pessoa que deseja esse
bem. Assim também a vida humana. Ela pode ter um valor subjetivo na medida em
que a pessoa estabelece seu valor para ela mesma, ou seja, em termos de até que
ponto ela quer esta vida e o quanto estar vivo e saudável e bom.
Pessoa
aqui entendida como indivíduo livre, igual, moral,
razoável e cooperante ao longo de sua vida numa sociedade bem-ordenada.
Portanto, de um indivíduo autônomo.
Essas três categorias estão presentes na arte e nos fundamentos
do cuidado em Enfermagem, articulando-as e valorizando-as, pois uma das
premissas da vida humana associada, jamais posta em dúvida nas atitudes e nas
ações humanas, consiste em sobreviver e prosperar.
O cuidar em Enfermagem, a partir dessas premissas, se identifica
por ser universal e intrinsecamente valioso e básico para a promoção da saúde.
Esta é um bem reconhecido como aquele que viabiliza sobreviver e prosperar. Se
o ser humano revela um valor em si e a vida em sociedade requer a promoção da saúde
para o desempenho de suas atividades na polis, pelo cuidado em Enfermagem
é possível diagnosticar, reconhecer, implementar e avaliar estratégias pensadas
a partir do cliente, e, por conseguinte estimular as possibilidades de
sobrevivência e a prosperidade da vida humana associada. São múltiplas as
atividades do Enfermeiro em promover e restaurar o bem-estar físico, o psíquico
e o social6, bem como as capacidades para encontrar forças e possibilidades de
funcionamento factíveis para a pessoa7, o que Florence denominou de poder
vital. Nessa perspectiva, o cuidar em Enfermagem insere-se no âmbito da
intergeracionalidade, pois opera com um conjunto de ações, procedimentos,
propósitos e eventos que se prolongam ao longo do tempo geracional. Abraça,
pois, diferentes gerações, imprimindo-lhes realização e promovendo bem-estar.
O postulado do longo tempo reflete, por si só, uma releitura da
justiça tipicamente temporal em duas direções: 1) a continuidade da vida humana
associada ao longo do tempo; 2) sentimento intuitivo de que os seres sob os
cuidados da Enfermagem são seres cósmicos e, simultaneamente, sujeitos de
direitos e deveres de uns para com os outros. Ao compartilhar a sobrevivência e
responder pela prosperidade da humanidade saudável, o cuidado se orienta pela
ética da responsabilidade. O cuidado em Enfermagem orientou-se por diversas
éticas. Neste texto, dar-se-á prioridade ao desenvolvimento e à possível
aplicação prática da ética da responsabilidade. Assim, por ser partícipe da ideia
da continuidade da vida humana associada com saúde, a Enfermagem, produz um
valor em si e sugere que as gerações futuras dêem continuidade às obras
coletivas nos domínios artísticos, intelectual, físico-corporal e científico
das gerações anteriores, bem como promova expectativas de bem-estar às gerações
futuras, da sociedade e da própria enfermagem.
O
ENSINO DA ÉTICA EM SAÚDE
O
ensino da ética, na maioria das áreas do saber, e principalmente na saúde, não
tem acompanhado a ética construída e exercitada no contexto das necessidades da
sociedade. Na ampla maioria dos currículos em saúde, este assunto classifica-se
no quadro da insignificância. Nos cursos regulares de saúde, por exemplo, a
ética aparece como disciplina optativa e em seminários pluridisciplinares. Uma
das explicações desta concepção de ensino da ética na formação de profissionais
em saúde advém do fato de que há mais interesse nas técnicas do que na ética,
como se essa não fosse inerente ao cotidiano desses profissionais. Este ensino
em geral se dá por meio dos juristas e filósofos, que na América Latina nem
sempre estão inseridos nos cursos da área da saúde. A preferência pelas
técnicas e a insuficiência de profissionais qualificados das diversas áreas do
conhecimento revelam carência epistemológica para pensar a Saúde e a Enfermagem
no âmbito da ética.
O rápido desenvolvimento de tecnologias, que foram mais
inovadoras nos últimos 25 anos do que o tinham sido nos anteriores e deram
origem a situações inéditas de decisão moral, revelam a urgência de se discutir
e preparar profissionais para desafios inusitados. Diversas e sofisticadas
tecnologias de cuidados intensivos permitem manter vivo um recém-nascido com
múltiplas e graves afecções ou prolongar a vida de um doente terminal. Quando é
ético administrar ou interromper estes cuidados intensivos? Noutros tempos, o
problema não se punha à avaliação no campo da saúde e com implicações para a
Enfermagem. Na ausência de possibilidades técnicas, a morte inevitável encarregava-se
de resolver a questão.
O mesmo se pode dizer, dentre outros, de tecnologias que
permitem o transplante de órgãos, a inseminação artificial in vitro, o
diagnóstico pré-natal e a terapia genética. À medida que a ciência transfere ao
homem poderes antes reservados à fatalidade da natureza, no que diz respeito ao
nascer, viver e morrer, pergunta-se até que ponto o exercício desses poderes -
tecnicamente viáveis – serão eticamente aceitáveis. Como por exemplo: prever se
uma criança irá ou não nascer com grave doença genética que possa afetar futuramente
a sua vida e saúde. Dependendo da orientação ética, as tecnologias médicas e
terapêuticas são alvos de críticas e, na sua maioria, passam a ser analisadas a
partir de comitês hospitalares, criados especialmente
para
resolver problemas éticos que, por extensão, têm grande peso na tomada de
decisão clínica.
Uma outra razão pela qual a ética no campo das ciências ficou
relegada a segundo plano baseou-se na crença de que ciência e tecnologia
proveriam continuamente conforto e benefício indefinidamente. Atividades científicas
conduzidas até recentemente consideravam-se “value-free and essentially
unproblematic”. O ensino formal de questões éticas relacionadas com ciência e
tecnologia ou estudos com este propósito raramente tem sido alvo do sistema
educacional.
Nesse sentido, os recentes avanços da biotecnologia criaram
desafios éticos, estimulando novos ensinamentos na disciplina de ética em saúde
e maior consciência nas questões éticas envolvidas nas decisões coletivas. Isto
tem contribuído não só para a solução de problemas, mas, talvez, e até com mais
importância, para o desenvolvimento de modalidades e métodos de abordar as
questões éticas de modo a promover uma nova racionalidade diante da vida.
Um dos aspectos mais significativos que dificultam o ensino da
ética em saúde diz respeito ao problema da identificação do agente. Os
profissionais de formação em saúde e que nela se especializam, particularmente em
áreas da saúde pública, podem, simplesmente, não ter experiência para
reconhecer um problema ético quando com ele se defrontam. Em se identificando
com o seu objeto de estudo, esquecem-se, por força desta mesma formação e
experiência acadêmicas, a compreensão mais estendida pela vida, autonomia
individual e privacidade. Ou seja, de uma visão ampliada e abrangente dos
desafios éticos na contemporaneidade e da vida humana associada em contextos
sócio-comunitários.
Como vimos, a carência epistemológica e o predomínio da
tecnologia contribuem para colocar a ética como disciplina na retaguarda das
preocupações em Enfermagem. Assim, o modo de se inserir a ética nos cursos de
Enfermagem, em geral, submete-se às disponibilidades de docentes e necessidades
históricosocial, ora dando-lhe um sentido magistral – caráter metaético - ora
submetendo-a unicamente a estudos de “casos” – ilustração exagerada sem vínculo
teórico – o que revelam inconsistência quando a questão envolve a vida e a
morte de uma pessoa. A postura metaética e os “casos”, no entanto, internalizam
duas
desvantagens
pedagógicas: a de postergar a própria natureza da ética, de um lado, e a de
subordinar os níveis de questionamentos éticos aos ditames das normas. Coloca-se
a ética sob o signo imperativo das regras e/ou sob o signo da interrogação,
problematizando-a sem regulamentá-la, ainda que a contínua indagação ética das
práticas profissionais seja necessária, ou seja, não há como negar que nenhuma
prática social pode passar ao largo da ética construída na sociedade.
Um dos pontos chaves é de que o ensino da ética, como qualquer
outra disciplina, transcenda a questão pedagógica, embora seja muito importante
o seu suporte. O que está em causa é saber se queremos que os profissionais
“possuam” ao fim de sua formação as normas, as regras, o código que deve reger suas
práticas, ou se desejamos que os profissionais tenham desenvolvido a
competência ética para problematizar e de constantemente responder às questões éticas
em termos que sejam, ao mesmo tempo, rigorosos e pertinentes. Em outras
palavras: o domínio e a sustentação de competências e habilidades,
principalmente de valores em termos de posicionar-se diante de diferentes
contextos e princípios que envolvem o nascer, o viver e o morrer.
Como se pode ensinar ética no contexto da saúde sem colocar a
questão do sentido múltiplo dado à vida e à morte? Sem se interrogar sobre as
implicações das mudanças da sociedade, ligadas ao desenvolvimento das
tecnologias, às crises econômicas que se sucedem ininterruptamente, às mudanças
demográficas modificando os relacionamentos intergeracionais, interétnicos e
interculturais? Daí advém que a construção da ética em enfermagem envolve a
filosofia, a hermenêutica, a religião, as tecnologias e a antropologia, para
compreender a magnitude do cuidado de enfermagem e a responsabilidade com o
humano em sociedade.
A
ENFERMAGEM E A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE
Para os efeitos aplicativos das éticas na Enfermagem, pode-se
afirmar que a ética teleológica determina o que é correto de acordo com uma
certa finalidade que se pretender atingir. Ou seja, procura o êxito da ação. Já
na ética deontológica, a análise das consequências de um ato ou comportamento
não deve influir no julgamento moral sobre as ações das pessoas; orienta-se
pela convicção.
Os postulados da ética deontológica respondem pelo vir-a-ser,
mas não totalmente pelas tomadas de decisões teleológicas no âmbito das organizações
da saúde. A proibição à exclusividade da própria conservação sugere a ética da
responsabilidade, com o intuito de superar a noção do êxito e da convicção.
A ética da responsabilidade é pautada como o eixo desta reflexão
por entender que ela constitui uma referência para o cuidado em Enfermagem. A
responsabilidade produz efeitos integrativos da dignidade humana, ponderando
circunstâncias concretas do cuidar e tomar decisões razoáveis, prudentes e equitativas.
Ao refletir sobre a ética da responsabilidade, reconhecemos que
uma ética em Enfermagem precisa ser construída no contexto ético da sociedade,
ou seja, reconhecer suas responsabilidades em termos de saúde e da vida de
forma mais abrangente, incluindo aí as perspectivas políticas da sociedade e da
profissão. A Enfermagem, diferentemente da deontologia médica, apresenta
características, no contexto de suas responsabilidades, de comprometimento com
processo de recuperação da saúde e está motivada pelo interesse recíproco. Isto
pode ser visualizado, quando da sustentação e o apoio ao cliente como ser
humano, da atividade de Enfermagem na realização de trabalhos orientados para o
alcance da melhoria da qualidade dos serviços de saúde (cooperação
interprofissional e intersetorial) bem como subsidiando o processo de tratamento.
Estas duas características – reciprocidade e cuidado em ambiente organizacional
– requer pensar uma nova ética em Enfermagem.
Pensar uma nova ética em enfermagem é antes de tudo reconhecer o
valor desta prática profissional para a sociedade. É pensar na saúde como um
bem, compreendendo as políticas sociais e no que elas interferem na vida
coletiva, reconhecer que o cuidado de enfermagem se convalida no outro e que o
valor transcende ao econômico.
COMENTÁRIOS
FINAIS
Nesta perspectiva, esta reflexão apresenta alguns aspectos da
ética em Enfermagem sob a ótica da prática e da responsabilidade, entendendo
que a ética se constrói no tempo e na história, transmite-se e enriquece-se ao
longo da vida da humanidade ao mesmo tempo em que se apresenta como um acordo
do homem (sua consciência) com ele mesmo, com a sociedade e com o mundo da
vida. Intenta, assim, relacionar a reflexão ética a questões de Saúde Pública,
a fim de contribuir para a visibilidade da enfermagem no que tange ao
desenvolvimento de políticas de saúde.
Por outro lado, essa reflexão contrapõe-se às visões que
intentam reduzir o processo saúde-doença a critérios e a fatores exclusivamente
biologicistas (determinismo genético-biológico), esquecendo as dimensões psicológicas,
socioeconômicas e culturais da pessoa e dos grupos humanos na reflexão ética
sobre a saúde das pessoas e das comunidades. O que se
percebe
é que a transposição da racionalidade moderna para a assistência à saúde,
determinou uma crescente compartimentalização do sujeito, permitindo, de um
lado, o avanço do conhecimento acerca do corpo biológico e de intervenções
precisas neste âmbito, e de outro, o distanciamento cada vez maior entre
profissionais/ instituições de saúde e usuários. Tal processo acaba
determinando uma compreensão do fenômeno saúde-doença cada vez mais distinto
para um e outro, numa dependência cada vez maior dos usuários dos serviços de
saúde em relação ao saber profissional e numa participação cada vez menor nas
decisões acerca de suas vida e sua saúde.
Esta reflexão fundamentou-se na pressuposição de que tanto a
Enfermagem quanto enfermeiros, são basicamente seres em processo e cujos corpos
se situam em um mundo que é ao mesmo tempo físico, social, moral e político.
Portanto, esses profissionais estão localizados em uma tradição cultural
específica que supre o estoque de funções sociais, estruturas, modelos e
metáforas que são o modo de apreender o mundo, compreendê-lo e raciocinar sobre
ele. Assim, os julgamentos morais ocorrem nesse panorama biológico-cultural e
do imaginário das pessoas. E por fim, como síntese mais completa, a narrativa
desempenha o papel de organizar nossa identidade e de avaliar nossos cenários
ao fazermos escolhas morais.
Nessa linha de raciocínio, o enfermeiro se confronta e lida
construtivamente com desafios da doença e dele mesmo que surgem em seu
dia-a-dia. Daí que não podemos meramente negar as tradições sócio-morais, pois
estas, em grande parte, definem nossa sensibilidade e sem nossa tradição nos arruinaríamos.
O que nós devemos fazer é alterar aspectos de nossa tradição para fazê-los
consistentes com nossos conhecimentos, pois esse é o caminho como a humanidade dá
sentido às coisas e os seres – sob cuidado ou não - são motivados para agir.
Portanto, de uma ética criadora de valores a partir dos valores existentes.
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