sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

SENTIMENTO E RAZÃO EM PLATÃO E ARISTÓTELES

Para que se entenda o pensamento ético de Platão faz-se necessário considerar que para ele ética não se separa de política, e política por sua vez não se separa de justiça, pois em sua teoria política ele realiza uma busca pela conduta justa na pólis. É, portanto, o conceito de justiça que guia o pensamento platônico e unifica a obra A República.
O motivo que levou Platão a escrever esta obra parece estar mais ligado ao sentimento que a razão, pois ele encontrava-se profundamente decepcionado com a condução da vida política ateniense à qual permitiu que seu mestre fosse levado à morte. Como membro da aristocracia de sua cidade, Platão estaria previamente destinado a desempenhar papel relevante na vida pública, mas as circunstâncias o encaminharam em outra direção. Platão se decepciona e se distancia da política ao presenciar a injusta condenação de Sócrates e por perceber que as “intrigas dos bastidores” têm reflexo na condução do exercício político, o que o leva a criticar a retórica sem fundamento e o discurso vazio. O resultado disto será seu afastamento da política e sua reclusão na esfera da teoria, pois um fosso havia sido criado entre teoria e práxis, entre filosofia e política. Foi a tirania que o levou a indagar sobre a melhor forma de governo e a procurar uma saída para o governo da cidade. Parece-nos que a intenção de Platão seria influir no mundo político sem ser propriamente um político ativo. Ele fará isto preparando os filósofos na academia e mostrando-lhes que justiça e educação deverão ser os pilares do sistema político e que para cada função na cidade corresponderá um tipo de educação.
Notemos, no parágrafo acima, que é justamente o amor, a amizade o elemento que impulsiona Platão rumo à elaboração desta importante obra, a qual apresentará inicialmente a preocupação de Sócrates em saber o que é a justiça. Num primeiro momento a justiça é apresentada como verdade (ou melhor, dizer, proferir a verdade) e a restituição ao outro daquilo que se pegou (segundo o velho e experiente Céfalo: “justiça resume-se em proferir a verdade e em restituir o que se tomou de alguém”). O comerciante Polemarco irá representar o senso comum ao afirmar que justiça é “restituir a cada um, o que convém”... “benefícios aos amigos e prejuízo aos inimigos” (331-336). Ainda seguindo esta linha de apresentar a justiça como uma forma individual de se comportar, o sofista Trasímaco irá afirmar que a justiça se liga ao interesse dos mais fortes e questionará se é melhor ser justo ou injusto. Glauco apresenta as três formas de bem, a saber: o bem por si mesmo (prazeres e alegrias); o bem por si e suas conseqüências (sensatez, saúde e justiça) e os bens penosos, mas úteis (ginástica e medicina). Glauco afirma que a justiça é praticada para se evitar os castigos impostos aos injustos e neste sentido fará referência ao “anel de Giges”.
Contrapondo estas três formas individuais de justiça, Sócrates apresenta uma forma geral: o equilíbrio interno (harmonia). A cidade ideal mostra-se com a mesma estrutura interna presente na alma de cada cidadão, pois a justiça é precisamente esta norma ordenadora, sendo que seu fundamento último é a idéia de bem. Para bem conviver na pólis é mister que o interesse desta esteja acima dos interesses individuais. Não possuindo propriedade, os guardiões da cidade estarão livres de interesses pessoais e dedicar-se-ão ao bem da cidade e não explorarão aqueles que a sustentam. A unidade da cidade não é ameaçada pela divisão de classes. Cada um, na medida em que ocupa sua função, contribuirá para que a cidade se torne unida e não múltipla (423d) e assim a cidade, perfeitamente boa, se descobrirá justa. Que cada um cumpra com seu ofício o mais perfeitamente possível sem se imiscuir no bom cumprimento do ofício dos outros (433a – 434c).
Assim como o homem possui três almas (vegetativa, desiderativa e intelectiva) a cidade possui três classes (econômica, guerreiros e magistrados). As virtudes cívicas correspondentes à estas classes são a temperança, a coragem e a sabedoria. O magistrado governa, os guerreiros protegem e a classe econômica sustenta a cidade. Nesta harmonia entre as classes encontra-se a justiça. A desordem é a injustiça e a harmonia a justiça (434c). O indivíduo que possuir em suas almas as três virtudes será justo. A justiça, portanto, é apresentada como proceder bem com os outros durante toda a vida. E é justamente este conceito que nos permite ligar este tema presente em Platão com as idéias de seu discípulo Aristóteles, desenvolvidas na obra Ética à Nicômaco, uma vez que podemos entender como “proceder bem com os outros” uma forma de “sabedoria prática” (fronesis, capacidade de bem agir, bem proceder).
Nesta última obra encontraremos uma íntima relação entre virtude (qualidade moral) e felicidade. Para Aristóteles o homem virtuoso é um homem bom e feliz que sente prazer em agir moralmente e assim o faz espontaneamente. A virtude é uma dosagem passional, mediania, equilíbrio. No homem virtuoso desejo e razão estão presentes de forma harmônica em seu agir e ele age naturalmente bem, espontaneamente.
Aristóteles começa sua obra tratando de bem e felicidade e definindo bem em si mesmo e sumo bem e apontando a virtude como um bem em si mesmo (a virtude tem um bem intrínseco em si e é moralmente qualificada). Já o sumo bem é a felicidade e ela depende de vários “bem em si mesmo”, e também de outros meios. A felicidade é um conjunto organizado de bens que visa a auto-realização do ser humano. O bem em si mesmo é um fim, a felicidade (sumo bem) não é um fim, mas uma atividade da alma. É a realização da natureza suprema do homem, dado que o sujeito pode buscar a virtude e algo mais, mas não pode buscar a felicidade e algo mais, pois a felicidade é um bem dominante entre os outros (fim inclusivo).
Aristóteles admite flutuações nas ações virtuosas, ou seja, nem sempre a virtude é um bem, pois o excesso de virtude pode resultar em algo que não representa um bem (por exemplo: o excesso de coragem pode transformar-se em temeridade). O bem existe por convenção e não por natureza, o que é bom só o é porque alguém o qualifica como bem. O bom cidadão o é em relação à constituição a que está sujeito; o bom homem o é independente de constituição, pois delibera segundo a sabedoria prática (trata-se de uma virtude que nasce da experiência, do cálculo, do ensino).
O homem não pode ser feliz só por sua vontade, indiferente ao mundo, imune às calamidades; não é só por disposição interna que o homem alcança a felicidade, mas está também suscetível aos fatores externos, à influência do ambiente em que se encontra. Embora possa o homem, mesmo perdendo sua felicidade, jamais deixar de ser virtuoso (Príamo [1101a] seria o exemplo do homem vitimado pelas circunstâncias da vida, o qual perde a felicidade, mas não deixa de ser virtuoso). Posso pensar a virtude sem felicidade, mas não posso pensar a felicidade sem virtude. Felicidade não é bem estar, é bem viver.
Existe uma pluralidade de bens (razão, honra, prazer, etc.) que nos ajudam a sermos felizes, porém o principal deles é a virtude. A felicidade é uma atividade da alma que consiste em estar atento aos bens e organizá-los, mas ela mesma não deve ser contada como um bem entre os outros, pois, como já se disse, ela é o sumo bem.
Pelo que foi acima exposto percebemos que a moral (eudaimonista) aristotélica não é intelectualista, mas encontra-se na harmonia entre razão e paixão. Agir com razão é agir moralmente e não agir racionalmente.