terça-feira, 11 de dezembro de 2018

O NAUFRÁGIO DO MIGNONETTE, UMA VIDA POR TRÊS

Em 1884, quatro homens partiram de barco da Inglaterra para a Austrália: o Comandante Thomas Dudley, o Imediato Edwin Stephens, o marinheiro Ned Brooks e Richard Parker, um camareiro de 17 anos, que via nessa sua primeira viagem perspectivas de melhoria de vida, pois era órfão.
Dias depois, uma enorme onda desabou sobre o barco e este afundou. Os homens só conseguiram apanhar duas latas de comida antes de entrar no bote salva-vidas. Estavam no meio do Oceano Atlântico, a 3 mil km da terra, só com umas latas de vegetais para os manter vivos.
Depois de três dias, conseguiram apanhar uma tartaruga a qual lhes deu comida e bebida, o sangue, por nove dias. Ainda a 1.850 km da terra, sem comida e só com os pingos de chuva para beber, os marinheiros se desesperaram. Uma possibilidade de sobrevivência para três deles era que um virasse comida para os outros.
O Comandante sugeriu que tirassem à sorte para decidir qual deles seria morto, mas o Stephens e o Brooks se opuseram. "Se vamos morrer", disseram eles, "devemos morrer todos juntos". O jovem Parker, doente por beber água do mar e pela insolação, deitado, meio inconsciente, no fundo do barco, não disse nada.
Depois de mais dois dias sem comida e nem água, o Comandante convenceu o Stephens de que um deles deveria ser sacrificado para salvar os outros, e o candidato seria Parker, pois era órfão, não tinha mulher ou família e estava já às portas da morte. Ele só acordava ocasionalmente do coma para beber mais água do mar e ficava ainda pior. Eles sabiam que um navio podia ser avistado qualquer dia – ou não.
Concordaram que se nenhuma ajuda aparecesse no dia seguinte, matariam o rapaz. Nenhuma ajuda veio. O Marinheiro Brooks não queria ter nada a ver com o assassinato. Dudley e Stephens se debruçaram sobre Parker, inconsciente. "Richard, meu rapaz", disse o Comandante, "Chegou o momento", Stephens preparou-se para agarrar os pés do rapaz, mas não era preciso.
Ele estava muito fraco para lutar quando o Comandante pegou seu canivete e o espetou em seu pescoço, matando-o instantaneamente. Todos os três homens beberam o sangue e comeram o coração e o fígado de Richard por três dias. Ao quarto dia foram avistados por um navio alemão, o Montezuma. Os três homens estavam muito fracos.
O Imediato e o Comandante tiveram de ser içados para bordo com uma corda. Os homens atracaram em Inglaterra dias depois. Dudley, Stephens e Brooks foram diretos às autoridades e explicaram as razões da morte do rapaz.

Disponível em http://aporia1011.blogspot.com/ (modificado). Acesso em 11.12.2018.

terça-feira, 31 de julho de 2018

TRÊS TIPOS DE AMIZADE SEGUNDO ARISTÓTELES


“Sem amigos ninguém escolheria viver, mesmo que tivesse todos os outros bens”
Aristóteles

Aristóteles sempre atribuiu um valor especial ao tema da amizade em suas obras. Para ele, era um bem valioso e um incentivo para uma vida feliz. No entanto, especificou que na vida podemos encontrar três tipos de amizade, três tipos de vínculos, onde apenas um pode se elevar a uma forma superior de relacionamento, a um vínculo excepcional longe do interesse e da simples casualidade.
Como se sabe, Aristóteles era um polímata. Seu conhecimento, ou melhor, sua ampla curiosidade lhe permitiu adquirir um conhecimento em áreas bem diversas como a lógica, a ciência, a filosofia… Assim, algo que sem dúvida é muito marcante quando abordamos trabalhos como Ética a Nicômaco é que ele descreve, naquela época, o ser humano como uma criatura rigorosamente social. Ele nos descreve como animais sociais, onde a amizade supõe, sem dúvida, a forma mais satisfatória de convivência.
Talvez em seu tempo o sábio não tivesse acesso ou possibilidade de conhecer os mistérios do cérebro, mas se há algo que a ciência moderna tem sido capaz de demonstrar é que este órgão precisa da interação social para se desenvolver, sobreviver e se beneficiar, por sua vez, de uma saúde adequada. Somos, sem dúvida, animais sociais, criaturas que precisam de fortes laços com nossos semelhantes. No entanto, os vínculos a que devemos aspirar devem, certamente, se basear em uma série de pilares. 

Os três tipos de amizade que caracterizam o ser humano
Muitas vezes vemos os filósofos clássicos como repletos de sabedoria respeitável, mas distantes. São as vozes de ontem que podemos citar de tempos em tempos com fins informativos, mas pensando, por sua vez, que muitas coisas que eles nos deixaram nesses legados milenares têm pouco a ver com as necessidades e características atuais. Nada está mais longe da realidade. Além disso, em meio à nossa ansiedade existencial é realmente oportuno nos reconectarmos com eles para descobrir textos autênticos de crescimento pessoal.
Ética a Nicômaco é um deles, um trabalho revelador sobre como alcançar a felicidade e sobre o lugar que nossas relações sociais ocupam no nosso dia a dia. Para Aristóteles, a amizade é um intercâmbio onde se aprende a receber e a doar, mas longe de ser concebida como um sistema de pagamento, devemos lembrar que “não é nobre desejar receber favores, porque só o infeliz precisa de benfeitores, e a amizade é, antes de tudo, liberdade. O estado mais virtuoso do ser”.
Por outro lado, algo que Aristóteles nos explica neste trabalho é que existem três tipos de amizade que, de alguma forma, todos nós encontramos em mais de uma ocasião.

A amizade interesseira
O fato de que as pessoas instrumentalizam umas às outras é bem conhecido. Algumas o fazem com mais frequência, outros não o concebem e alguns entendem a amizade desta maneira: “começo uma relação de falsa amizade com você na esperança de obter algum benefício”.
Embora tenhamos um ou vários amigos, todos esperamos receber algo em troca: apoio, confiança, construir bons momentos, compartilhar situações de lazer, etc. Há quem utilize a adulação e a manipulação para obter dimensões mais elevadas: posição social, reconhecimento, etc.

A amizade que só procura prazer
Este é um dos três tipos de amizade que, sem dúvida, nos será bem conhecida. É uma interação que geralmente ocorre muito durante a adolescência e no início da juventude. Mais tarde, quando nos tornamos mais seletivos, cautelosos e aplicamos filtros apropriados, é menos comum ver este tipo de amizade de duas faces surgindo.
Agora, em que se diferencia a amizade interesseira da que busca prazer? Na primeira, a pessoa procura obter um benefício, sejam favores, acesso a outras pessoas, reconhecimento, etc. No caso da segunda dimensão, o que se deseja é simplesmente “aproveitar o tempo”.
São pessoas orientadas a um hedonismo vazio e inconsequente, que procuram estar com os outros exclusivamente para compartilhar momentos de descontração, alegre cumplicidade e agradável bem-estar. Assim, quando a outra pessoa precisa de um apoio sincero diante de um problema ou quando as coisas se complicam, o falso amigo se dissolve no nada, como açúcar em uma xícara de café.
A amizade para Aristóteles consiste em almejar e procurar o bem do amigo, favorecendo, por sua vez, nossa própria realização individual ao cuidar desse vínculo especial. 

A amizade perfeita
Entre os três tipos de amizade definidos por Aristóteles, existe a ideal, a mais sólida, a mais excepcional, mas ainda possível. É aquela em que, além da utilidade ou do prazer, há uma apreciação sincera pelo outro como ele é. Há um tipo de altruísmo nesse vínculo onde não se busca tirar proveito, onde simplesmente se deseja compartilhar os bons momentos, as coisas cotidianas e ser também a referência permanente a quem recorrer para receber apoio.
É a amizade baseada na bondade, a que Aristóteles descreveu quase como uma relação de casal. Porque, no final das contas, os amigos perfeitos, os amigos de coração são muito poucos, são escassos, são as referências para construir um senso de intimidade profunda, onde esperamos não sermos traídos, onde se valorizam experiências, recordações e promessas que nem o tempo ou a distância podem destruir.
Para concluir, é bem possível que muitos de nós tenhamos nesse momento os três tipos de amizade descritos por Aristóteles: pessoas que querem algo de nós, amigos que só nos procuram para compartilhar momentos de diversão, e pessoas excepcionais que estão presentes para o que der e vier. Amigos que não trocaríamos por nada e que fazem dessa vida uma viagem mais divertida e interessante.

Acesso em 31.jul.2018.

terça-feira, 17 de julho de 2018

A DIFERENÇA ENTRE AMOR-PRÓPRIO E AMOR DE SI MESMO, SEGUNDO ROUSSEAU


É preciso não confundir o amor-próprio e o amor de si mesmo, duas paixões muito diferentes por sua natureza e por seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar por sua própria conservação, e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio é apenas um sentimento relativo, factício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que se fazem mutuamente, e que é a verdadeira fonte da honra.
Bem entendido isso, repito que, no nosso estado primitivo, no verdadeiro estado de natureza, o amor-próprio não existe; porque, cada homem em particular olhando a si mesmo como o único espectador que o observa, como o único ser no universo que toma interesse por ele, como o único juiz do seu próprio mérito, não é possível que um sentimento que teve origem em comparações que ele não é capaz de fazer possa germinar em sua alma. Pela mesma razão, esse homem não poderia ter ódio nem desejo de vingança, paixões que só podem nascer da opinião de alguma ofensa recebida. E, como é o desprezo ou a intenção de prejudicar, e não o mal, que constitui a ofensa, homens que não sabem se apreciar nem se comparar podem fazer-se muitas violências mútuas para tirar alguma vantagem, sem jamais se ofenderem reciprocamente. Em uma palavra, cada homem, vendo seus semelhantes apenas como veria os animais de outra espécie, pode arrebatar a presa ao mais fraco ou ceder a sua ao mais forte, sem encarar essas rapinagens senão como acontecimentos naturais, sem o menor movimento de insolência ou de despeito, e sem outra paixão que a dor ou a alegria de um bom ou mau sucesso.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 323-324. (Clássicos).

quinta-feira, 24 de maio de 2018