segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

A ÉTICA DISCURSIVA DE HABERMAS

            Jürgen Habermas pertence a Escola de Frankfurt e como tal faz críticas à razão moderna iluminista, ou mais especificamente, à razão kantiana, alegando tratar-se de razão monológica, ou seja, fechada em si, subjetiva. Para vencer tal deficiência ele propõe a razão comunicativa, aquela que dialoga e leva em consideração a intersubjetividade. Deste modo, ele busca construir todo seu pensamento fundamentado nesta concepção e propõe, no campo da ética, uma ética discursiva. Importa, para ele, “recuperar a razão não repressora, mas comprometida com a vida e a emancipação humanas” (ARANHA, 2005, p. 231).
“O conceito de razão em Habermas não é o mesmo do iluminismo. Trata-se de uma razão comunicativa, que não existe pronta nem acabada, mas que se constrói a partir de uma argumentação que leva a um entendimento entre os indivíduos. É uma razão interpessoal e não subjetiva; é uma razão processual e não definitiva e acabada” (COTRIM, 2008, p. 255). Habermas faz uma distinção entre razão instrumental (quando alguém egoisticamente utiliza as coisas ou pessoas como meios para alcançar o seu propósito) e razão comunicativa (quando se recorre à linguagem com a intenção de alcançar o entendimento sem coação).
            A ética discursiva busca dar à ética um fundamento racional através da idéia de que a reflexão sobre os pressupostos da comunicação interpessoal permite identificar os princípios morais realmente irrenunciáveis que devem ser a base de toda convivência humana: o reconhecimento do outro, a não-coação da comunicação, a disposição para a solução de problemas e a fundamentação de normas através do discurso livre e igual. Esta modalidade ética está “fundada no diálogo e no consenso entre os sujeitos. O que se buscaria nesse diálogo é a razão que, tendo sido reconhecida pelos participantes do diálogo, sirva como fundamentação última para a ação moral” (COTRIM, 2008, p. 255). Ou seja, o discurso moral deve estender-se a todas as normas de ações passíveis de serem justificadas, ou fundamentadas racionalmente.
Habermas afirma que “uma moral racional se posiciona criticamente em relação a todas as orientações da ação, sejam elas naturais, auto evidentes, institucionalizadas ou ancoradas em motivos através de padrões de socialização. No momento em que uma alternativa de ação e seu pano de fundo normativo são expostos ao olhar crítico dessa moral, entra em cena a problematização. A moral da razão é especializada em questões de justiça e aborda em princípio tudo à luz forte e restrita da universalidade.” (HABERMAS, 1997, p. 149).
Apesar de discordar de Kant, Habermas é considerado um universalista ético, assim como Kant o foi. Isso significa que a ética por eles elaborada deve ter alcance sobre todos os seres racionais. Porém em Habermas percebemos que “a forma básica de seu pensamento é reflexiva, ou seja, autorreferente. [...] O ponto de partida da reflexão não é – como em Kant – o pensamento solitário do indivíduo, mas o discurso, a argumentação em comum, sempre mediatizada pela linguagem” (HELFERICH, 2006, p. 442). Portanto, uma norma só poderá ser considerada correta se todos os envolvidos estiverem de acordo em dar-lhe o seu consentimento.
Desse modo, a ética do discurso tenta detectar aquilo que nós sempre fizemos em processos comunicativos de entendimento, as precondições e os requisitos de um entendimento bem-sucedido; busca descrever os procedimentos do entendimento entre iguais de maneira que o resultado possa ser considerado justo. Para a ética do discurso a abertura ao outro, a tolerância, o respeito e o diálogo são imprescindíveis para a boa convivência no mundo plural em que nos encontramos. A globalização e a diversidade de culturas exigem, para que possamos viver bem na sociedade atual, que respeitemos e dialoguemos com todos, mormente o diferente.
Referências
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2005. 344 p.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia: História e grandes temas. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2v., 1997.
HELFERICH, Christoph. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A importância da proairesis


     Aristóteles dividiu as virtudes em éticas (agir corretamente) e dianoéticas (deliberar corretamente). As virtudes dianoéticas têm a ver com as escolhas acertadas. No nosso dia-a-dia fazemos inúmeras escolhas, algumas não têm impacto ético, mas outras podem ter. Além de fazermos escolhas devemos ter a firmeza para tentar cumprir com aquilo que elas se propõem. Escolher acertadamente, na língua grega, chama-se proairésis.
       Segundo Armendane (2010), Aristóteles considerava que a ação está diretamente relacionada com o desejo (órexis), com o querer e com a vontade (boúlesis) humana. O desejo humano consiste no ansiar por um fim previamente estabelecido: a felicidade (eudaimonia). De acordo com Aristóteles, um ato só é voluntário quando quem o pratica conhece todas as circunstâncias particulares inerentes à sua ação.
       Aquele que confiar na parte racional da decisão deve preparar-se para uma atitude intelectual, denominada phrônesis, que significa prudência. A phrônesis era, de acordo com Aristóteles, a primeira virtude dianoética, a qual trata de estabelecer a medida razoável entre os extremos, para que o ser humano possa agir em conformidade com a reta razão. Ela representa a ética suprema por excelência e indica a habilidade do homem sábio de deliberar bem sobre o que é bom e conveniente para si mesmo, não apenas em relação a um aspecto particular, mas, sobretudo, acerca das coisas que nos levam a viver bem por toda a vida. Para Aristóteles, o homem prudente se constitui no modelo de realização concreta do bem.
      Analisando a contribuição dessas ideias de Aristóteles para os dias de hoje, percebemos que todos os dias, à quase todo momento, fazemos escolhas. Algumas são aparentemente simples, como dirigir após ingerir bebida alcoólica; divertir-se ao lado de pessoas que desconhecem limites (estar no lugar errado, na hora errada e com pessoas erradas); acobertar colegas que cometem pequenos delitos sendo conivente com os mesmos; não devolver, ou nem tentar devolver, objetos encontrados; não arcar com suas despesas quando isso é possível; deixar dívidas vencidas e usar o dinheiro para outra finalidade; vender o voto; ignorar ajuda quando está ao nosso alcance; não assumir a responsabilidade por atos falhos; etc. É claro que também existem escolhas mais complexas e prejudiciais, as quais não acreditamos que sejam inerentes ao caráter de nossos acadêmicos. São escolhas feitas deliberadamente com o propósito de causar o mal aos outros.
       Todas as nossas escolhas poderão ter impacto sobre a nossa vida, permitindo-nos aproximação ou afastamento da felicidade. Existem escolhas irremediáveis que trazem consequências irreparáveis e aniquilam completamente a felicidade dos seus agentes e que, portanto, tanto quanto possível, devem ser evitadas.

Bibliografia
ARMENDANE, Geraldo das Dores de. A Teoria da Ação de Aristóteles e a Noção Gramatical de Vontade no Segundo Wittgenstein. In: Cadernos UFS Filosofia. Ano 6. Fasc. XII, Vol. 8, agosto a dezembro de 2010, pp. 75-83.

sábado, 11 de novembro de 2017

Sobre política e jardinagem

RUBEM ALVES

De todas as vocações, a política é a mais nobre. Vocação, do latim "vocare", quer dizer "chamado". Vocação é um chamado interior de amor: chamado de amor por um "fazer". No lugar desse "fazer" o vocacionado quer "fazer amor" com o mundo. Psicologia de amante: faria, mesmo que não ganhasse nada.
"Política" vem de "polis", cidade. A cidade era, para os gregos, um espaço seguro, ordenado e manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da felicidade. O político seria aquele que cuidaria desse espaço. A vocação política, assim, estaria a serviço da felicidade dos os moradores da cidade.
Talvez por terem sido nômades no deserto, os hebreus não sonhavam com cidades; sonhavam com jardins. Quem mora no deserto sonha com oásis. Deus não criou uma cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemos a um profeta hebreu "o que é política?", ele nos responderia: "A arte da jardinagem aplicada às coisas públicas".
O político por vocação é um apaixonado pelo grande jardim para todos. Seu amor é tão grande que ele abre mão do pequeno jardim que ele poderia plantar para si mesmo. De que vale um pequeno jardim se a sua volta está o deserto? É preciso que o deserto inteiro se transforme em jardim.
Amo a minha vocação, que é escrever. Literatura é uma vocação bela e fraca. O escritor tem amor, mas não tem poder. Mas o político tem. Um político por vocação é um poeta forte: ele tem o poder de transformar poemas sobre jardins em jardins de verdade.
A vocação política é transformar sonhos em realidade. É uma vocação tão feliz que Platão sugeriu que os políticos não precisam possuir nada: bastar-lhes-ia o grande jardim para todos. Seria indigno que o jardineiro tivesse um espaço privilegiado, melhor e diferente do espaço ocupado por todos. Conheci e conheço muitos políticos por vocação. Sua vida foi e continua a ser um motivo de esperança.
Vocação é diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a felicidade na própria ação. Na profissão o prazer se encontra não na ação. O prazer está no ganho que dela se deriva. O homem movido pela vocação é um amante. Faz amor com a amada pela alegria de fazer amor. O profissional não ama a mulher. Ele ama o dinheiro que recebe dela. É um gigolô.
Todas as vocações podem ser transformadas em profissões. O jardineiro por vocação ama o jardim de todos. O jardineiro por profissão usa o jardim de todos para construir seu jardim privado, ainda que, para que isso aconteça, ao seu redor aumentem o deserto e o sofrimento.
Assim é a política. São muitos os políticos profissionais. Posso, então, enunciar minha segunda tese: de todas as profissões, a política é a mais vil. O que explica o desencanto total do povo, em relação à política. Guimarães Rosa, questionado por Günter Lorenz se ele se considerava político, respondeu: "Eu jamais poderia ser político com toda essa charlatanice da realidade. Ao contrário dos "legítimos" políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. O político pensa apenas em minutos. Sou escritor e penso em eternidades. Eu penso na ressurreição do homem".
Quem pensa em minutos não tem paciência para plantar árvores. Uma árvore leva muitos anos para crescer. É mais lucrativo cortá-las.
Nosso futuro depende dessa luta entre políticos por vocação e políticos por profissão. O triste é que muitos que sentem o chamado da política não têm coragem de atendê-lo, por medo da vergonha de ser confundidos com gigolôs e de ter de conviver com gigolôs.
Escrevo para você, jovem, para seduzi-lo à vocação política. Talvez haja um jardineiro adormecido dentro de você. A escuta da vocação é difícil, porque ela é perturbada pela gritaria das escolhas esperadas, normais, medicina, engenharia, computação, direito, ciência. Todas elas são legítimas, se forem vocação. Mas todas elas são afunilantes: vão colocá-lo num pequeno canto do jardim, muito distante do lugar onde o destino do jardim é decidido. Não seria muito mais fascinante participar dos destinos do jardim?
Acabamos de celebrar os 500 anos do Descobrimento do Brasil. Os descobridores, ao chegar, não encontraram um jardim. Encontraram uma selva. Selva não é jardim. Selvas são cruéis e insensíveis, indiferentes ao sofrimento e à morte. Uma selva é uma parte da natureza ainda não tocada pela mão do homem.
Aquela selva poderia ter sido transformada num jardim. Não foi. Os que sobre ela agiram não eram jardineiros, mas lenhadores e madeireiros. Foi assim que a selva, que poderia ter se tornado jardim, para a felicidade de todos, foi sendo transformada em desertos salpicados de luxuriantes jardins privados onde poucos encontram vida e prazer.
Há descobrimentos de origens. Mais belos são os descobrimentos de destinos. Talvez, então, se os políticos por vocação se apossarem do jardim, poderemos começar a traçar um novo destino. Então, em vez de desertos e jardins privados, teremos um grande jardim para todos, obra de homens que tiveram o amor e a paciência de plantar árvores em cuja sombra nunca se assentariam.


Rubem Alves, 66, educador, escritor e psicanalista, é professor emérito da Universidade Estadual de Campinas. É autor de "Entre a Ciência e a Sapiência: o Dilema da Educação" (Edições Loyola), entre outras obras.
Extraído de http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1905200009.htm Acesso em 11.11.17 - às 8h54m.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Descartes e a utilidade da Filosofia

Seguidamente faria notar a utilidade desta Filosofia e mostraria que, uma vez que se estende a tudo o que o espírito humano consegue saber, devemos acreditar que apenas ela nos distingue dos mais selvagens e bárbaros, e que uma nação é tanto mais civilizada e polida quanto melhor os seus homens filosofarem: e assim, o maior bem de um Estado é possuir verdadeiros filósofos. Além disso, para cada homem em particular é útil não só viver com os que se aplicam a tal estudo, mas também que é incomparavelmente melhor que cada qual se aplique a ele, pois vale muito mais servirmo-nos dos nossos próprios olhos para nos conduzirmos e desfrutarmos, por seu intermédio, da beleza das cores e da luz, do que mantê-los fechados e dispor apenas de si próprio para se conduzir. Ora, viver sem filosofar é ter os olhos fechados e nunca procurar abri-los; e o prazer de ver todas as coisas que a nossa vista descobre não é nada comparado com a satisfação que advém do conhecimento daquilo que se encontra pela Filosofia. Finalmente, este assunto é mais necessário para regrar os costumes e nos conduzirmos nesta vida do que o uso dos olhos para nos guiar os passos. Os brutos animais que apenas possuem o corpo para conservar ocupam-se continuamente na procura de alimentos; mas os homens, cuja parte principal é o espírito, deveriam empregar os seus principais cuidados na procura da sabedoria que é o seu verdadeiro alimento. Também estou convencido de que muitos não deixariam de o fazer se tivessem a esperança de o conseguir e se soubessem quanto são capazes disso. Não existe alma, por menos nobre que seja, que, embora fortemente ligada aos objetos dos sentidos, não se afaste algumas vezes deles para desejar outro bem maior, apesar de frequentemente ignorar em que consiste. Aqueles que a sorte mais favorece com saúde, honras e riquezas não estão mais isentos de tal desejo do que os outros; pelo contrário, estou persuadido de que estes suspiram com mais ardor por um bem mais soberano do que todos aqueles que já possuem. (DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, s/d. p. 16).

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O ENSINO DA ÉTICA EM SAÚDE

Maria de Lourdes de Souza
 Vicente Volnei de Bona Sartor
Marta Lenise do Prado

O ensino da ética, na maioria das áreas do saber, e principalmente na saúde, não tem acompanhado a ética construída e exercitada no contexto das necessidades da sociedade. Na ampla maioria dos currículos em saúde, este assunto classifica-se no quadro da insignificância. Nos cursos regulares de saúde, por exemplo, a ética aparece como disciplina optativa e em seminários pluridisciplinares. Uma das explicações desta concepção de ensino da ética na formação de profissionais em saúde advém do fato de que há mais interesse nas técnicas do que na ética, como se essa não fosse inerente ao cotidiano desses profissionais. Este ensino em geral se dá por meio dos juristas e filósofos, que na América Latina nem sempre estão inseridos nos cursos da área da saúde. A preferência pelas técnicas e a insuficiência de profissionais qualificados das diversas áreas do conhecimento revelam carência epistemológica para pensar a Saúde no âmbito da ética.
O rápido desenvolvimento de tecnologias, que foram mais inovadoras nos últimos 25 anos do que o tinham sido nos anteriores e deram origem a situações inéditas de decisão moral, revelam a urgência de se discutir e preparar profissionais para desafios inusitados. Diversas e sofisticadas tecnologias de cuidados intensivos permitem manter vivo um recém-nascido com múltiplas e graves afecções ou prolongar a vida de um doente terminal. Quando é ético administrar ou interromper estes cuidados intensivos? Noutros tempos, o problema não se punha à avaliação no campo da saúde e com implicações para o profissional dessa área. Na ausência de possibilidades técnicas, a morte inevitável encarregava-se de resolver a questão.
O mesmo se pode dizer, dentre outros, de tecnologias que permitem o transplante de órgãos, a inseminação artificial in vitro, o diagnóstico pré-natal e a terapia genética. À medida que a ciência transfere ao homem poderes antes reservados à fatalidade da natureza, no que diz respeito ao nascer, viver e morrer, pergunta-se até que ponto o exercício desses poderes - tecnicamente viáveis – serão eticamente aceitáveis. Como por exemplo: prever se uma criança irá ou não nascer com grave doença genética que possa afetar futuramente a sua vida e saúde. Dependendo da orientação ética, as tecnologias médicas e terapêuticas são alvos de críticas e, na sua maioria, passam a ser analisadas a partir de comitês hospitalares, criados especialmente para resolver problemas éticos que, por extensão, têm grande peso na tomada de decisão clínica.
Uma outra razão pela qual a ética no campo das ciências ficou relegada a segundo plano baseou-se na crença de que ciência e tecnologia proveriam continuamente conforto e benefício indefinidamente. Atividades científicas conduzidas até recentemente consideravam-se value-free and essentially unproblematic. O ensino formal de questões éticas relacionadas com ciência e tecnologia ou estudos com este propósito raramente tem sido alvo do sistema educacional.
Nesse sentido, os recentes avanços da biotecnologia criaram desafios éticos, estimulando novos ensinamentos na disciplina de ética em saúde e maior consciência nas questões éticas envolvidas nas decisões coletivas. Isto tem contribuído não só para a solução de problemas, mas, talvez, e até com mais importância, para o desenvolvimento de modalidades e métodos de abordar as questões éticas de modo a promover uma nova racionalidade diante da vida.
Um dos aspectos mais significativos que dificultam o ensino da ética em saúde diz respeito ao problema da identificação do agente. Os profissionais de formação em saúde e que nela se especializam, particularmente em áreas da saúde pública, podem, simplesmente, não ter experiência para reconhecer um problema ético quando com ele se defrontam. Em se identificando com o seu objeto de estudo, esquecem-se, por força desta mesma formação e experiência acadêmicas, a compreensão mais estendida pela vida, autonomia individual e privacidade. Ou seja, de uma visão ampliada e abrangente dos desafios éticos na contemporaneidade e da vida humana associada em contextos sócio-comunitários.
Como vimos, a carência epistemológica e o predomínio da tecnologia contribuem para colocar a ética como disciplina na retaguarda das preocupações referentes à saúde. Assim, o modo de se inserir a ética nos cursos da saúde, em geral, submete-se às disponibilidades de docentes e necessidades históricosocial, ora dando-lhe um sentido magistral – caráter metaético – ora submetendo-a unicamente a estudos de “casos” – ilustração exagerada sem vínculo teórico – o que revelam inconsistência quando a questão envolve a vida e a morte de uma pessoa. A postura metaética e os “casos”, no entanto, internalizam duas desvantagens pedagógicas: a de postergar a própria natureza da ética, de um lado, e a de subordinar os níveis de questionamentos éticos aos ditames das normas. Coloca-se a ética sob o signo imperativo das regras e/ou sob o signo da interrogação, problematizando-a sem regulamentá-la, ainda que a contínua indagação ética das práticas profissionais seja necessária, ou seja, não há como negar que nenhuma prática social pode passar ao largo da ética construída na sociedade.
Um dos pontos chaves é de que o ensino da ética, como qualquer outra disciplina, transcenda a questão pedagógica, embora seja muito importante o seu suporte. O que está em causa é saber se queremos que os profissionais “possuam” ao fim de sua formação as normas, as regras, o código que deve reger suas práticas, ou se desejamos que os profissionais tenham desenvolvido a competência ética para problematizar e de constantemente responder às questões éticas em termos que sejam, ao mesmo tempo, rigorosos e pertinentes. Em outras palavras: o domínio e a sustentação de competências e habilidades, principalmente de valores em termos de posicionar-se diante de diferentes contextos e princípios que envolvem o nascer, o viver e o morrer.
Como se pode ensinar ética no contexto da saúde sem colocar a questão do sentido múltiplo dado à vida e à morte? Sem se interrogar sobre as implicações das mudanças da sociedade, ligadas ao desenvolvimento das tecnologias, às crises econômicas que se sucedem ininterruptamente, às mudanças demográficas modificando os relacionamentos intergeracionais, interétnicos e interculturais? Daí advém que a construção da ética nas áreas da saúde envolve a filosofia, a hermenêutica, a religião, as tecnologias e a antropologia, para compreender a magnitude do cuidado e a responsabilidade com o humano em sociedade.


(Disponível em http://www.scielo.br/pdf/tce/v14n1/a10v14n1 Acesso em 06.02.15 - Às 19h08m [Modificado]).