quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O ENSINO DA ÉTICA EM SAÚDE

Maria de Lourdes de Souza
 Vicente Volnei de Bona Sartor
Marta Lenise do Prado

O ensino da ética, na maioria das áreas do saber, e principalmente na saúde, não tem acompanhado a ética construída e exercitada no contexto das necessidades da sociedade. Na ampla maioria dos currículos em saúde, este assunto classifica-se no quadro da insignificância. Nos cursos regulares de saúde, por exemplo, a ética aparece como disciplina optativa e em seminários pluridisciplinares. Uma das explicações desta concepção de ensino da ética na formação de profissionais em saúde advém do fato de que há mais interesse nas técnicas do que na ética, como se essa não fosse inerente ao cotidiano desses profissionais. Este ensino em geral se dá por meio dos juristas e filósofos, que na América Latina nem sempre estão inseridos nos cursos da área da saúde. A preferência pelas técnicas e a insuficiência de profissionais qualificados das diversas áreas do conhecimento revelam carência epistemológica para pensar a Saúde no âmbito da ética.
O rápido desenvolvimento de tecnologias, que foram mais inovadoras nos últimos 25 anos do que o tinham sido nos anteriores e deram origem a situações inéditas de decisão moral, revelam a urgência de se discutir e preparar profissionais para desafios inusitados. Diversas e sofisticadas tecnologias de cuidados intensivos permitem manter vivo um recém-nascido com múltiplas e graves afecções ou prolongar a vida de um doente terminal. Quando é ético administrar ou interromper estes cuidados intensivos? Noutros tempos, o problema não se punha à avaliação no campo da saúde e com implicações para o profissional dessa área. Na ausência de possibilidades técnicas, a morte inevitável encarregava-se de resolver a questão.
O mesmo se pode dizer, dentre outros, de tecnologias que permitem o transplante de órgãos, a inseminação artificial in vitro, o diagnóstico pré-natal e a terapia genética. À medida que a ciência transfere ao homem poderes antes reservados à fatalidade da natureza, no que diz respeito ao nascer, viver e morrer, pergunta-se até que ponto o exercício desses poderes - tecnicamente viáveis – serão eticamente aceitáveis. Como por exemplo: prever se uma criança irá ou não nascer com grave doença genética que possa afetar futuramente a sua vida e saúde. Dependendo da orientação ética, as tecnologias médicas e terapêuticas são alvos de críticas e, na sua maioria, passam a ser analisadas a partir de comitês hospitalares, criados especialmente para resolver problemas éticos que, por extensão, têm grande peso na tomada de decisão clínica.
Uma outra razão pela qual a ética no campo das ciências ficou relegada a segundo plano baseou-se na crença de que ciência e tecnologia proveriam continuamente conforto e benefício indefinidamente. Atividades científicas conduzidas até recentemente consideravam-se value-free and essentially unproblematic. O ensino formal de questões éticas relacionadas com ciência e tecnologia ou estudos com este propósito raramente tem sido alvo do sistema educacional.
Nesse sentido, os recentes avanços da biotecnologia criaram desafios éticos, estimulando novos ensinamentos na disciplina de ética em saúde e maior consciência nas questões éticas envolvidas nas decisões coletivas. Isto tem contribuído não só para a solução de problemas, mas, talvez, e até com mais importância, para o desenvolvimento de modalidades e métodos de abordar as questões éticas de modo a promover uma nova racionalidade diante da vida.
Um dos aspectos mais significativos que dificultam o ensino da ética em saúde diz respeito ao problema da identificação do agente. Os profissionais de formação em saúde e que nela se especializam, particularmente em áreas da saúde pública, podem, simplesmente, não ter experiência para reconhecer um problema ético quando com ele se defrontam. Em se identificando com o seu objeto de estudo, esquecem-se, por força desta mesma formação e experiência acadêmicas, a compreensão mais estendida pela vida, autonomia individual e privacidade. Ou seja, de uma visão ampliada e abrangente dos desafios éticos na contemporaneidade e da vida humana associada em contextos sócio-comunitários.
Como vimos, a carência epistemológica e o predomínio da tecnologia contribuem para colocar a ética como disciplina na retaguarda das preocupações referentes à saúde. Assim, o modo de se inserir a ética nos cursos da saúde, em geral, submete-se às disponibilidades de docentes e necessidades históricosocial, ora dando-lhe um sentido magistral – caráter metaético – ora submetendo-a unicamente a estudos de “casos” – ilustração exagerada sem vínculo teórico – o que revelam inconsistência quando a questão envolve a vida e a morte de uma pessoa. A postura metaética e os “casos”, no entanto, internalizam duas desvantagens pedagógicas: a de postergar a própria natureza da ética, de um lado, e a de subordinar os níveis de questionamentos éticos aos ditames das normas. Coloca-se a ética sob o signo imperativo das regras e/ou sob o signo da interrogação, problematizando-a sem regulamentá-la, ainda que a contínua indagação ética das práticas profissionais seja necessária, ou seja, não há como negar que nenhuma prática social pode passar ao largo da ética construída na sociedade.
Um dos pontos chaves é de que o ensino da ética, como qualquer outra disciplina, transcenda a questão pedagógica, embora seja muito importante o seu suporte. O que está em causa é saber se queremos que os profissionais “possuam” ao fim de sua formação as normas, as regras, o código que deve reger suas práticas, ou se desejamos que os profissionais tenham desenvolvido a competência ética para problematizar e de constantemente responder às questões éticas em termos que sejam, ao mesmo tempo, rigorosos e pertinentes. Em outras palavras: o domínio e a sustentação de competências e habilidades, principalmente de valores em termos de posicionar-se diante de diferentes contextos e princípios que envolvem o nascer, o viver e o morrer.
Como se pode ensinar ética no contexto da saúde sem colocar a questão do sentido múltiplo dado à vida e à morte? Sem se interrogar sobre as implicações das mudanças da sociedade, ligadas ao desenvolvimento das tecnologias, às crises econômicas que se sucedem ininterruptamente, às mudanças demográficas modificando os relacionamentos intergeracionais, interétnicos e interculturais? Daí advém que a construção da ética nas áreas da saúde envolve a filosofia, a hermenêutica, a religião, as tecnologias e a antropologia, para compreender a magnitude do cuidado e a responsabilidade com o humano em sociedade.


(Disponível em http://www.scielo.br/pdf/tce/v14n1/a10v14n1 Acesso em 06.02.15 - Às 19h08m [Modificado]).