Maria
de Lourdes de Souza
Vicente Volnei de Bona Sartor
Marta
Lenise do Prado
O ensino da ética, na
maioria das áreas do saber, e principalmente na saúde, não tem acompanhado a
ética construída e exercitada no contexto das necessidades da sociedade. Na ampla
maioria dos currículos em saúde, este assunto classifica-se no quadro da
insignificância. Nos cursos regulares de saúde, por exemplo, a ética aparece
como disciplina optativa e em seminários pluridisciplinares. Uma das
explicações desta concepção de ensino da ética na formação de profissionais em
saúde advém do fato de que há mais interesse nas técnicas do que na ética, como
se essa não fosse inerente ao cotidiano desses profissionais. Este ensino em
geral se dá por meio dos juristas e filósofos, que na América Latina nem sempre
estão inseridos nos cursos da área da saúde. A preferência pelas técnicas e a
insuficiência de profissionais qualificados das diversas áreas do conhecimento
revelam carência epistemológica para pensar a Saúde no âmbito da ética.
O rápido desenvolvimento
de tecnologias, que foram mais inovadoras nos últimos 25 anos do que o tinham
sido nos anteriores e deram origem a situações inéditas de decisão moral,
revelam a urgência de se discutir e preparar profissionais para desafios
inusitados. Diversas e sofisticadas tecnologias de cuidados intensivos permitem
manter vivo um recém-nascido com múltiplas e graves afecções ou prolongar a
vida de um doente terminal. Quando é ético administrar ou interromper estes
cuidados intensivos? Noutros tempos, o problema não se punha à avaliação no
campo da saúde e com implicações para o profissional dessa área. Na ausência de
possibilidades técnicas, a morte inevitável encarregava-se de resolver a
questão.
O mesmo se pode dizer,
dentre outros, de tecnologias que permitem o transplante de órgãos, a inseminação
artificial in vitro, o diagnóstico pré-natal e a terapia genética. À
medida que a ciência transfere ao homem poderes antes reservados à fatalidade
da natureza, no que diz respeito ao nascer, viver e morrer, pergunta-se até que
ponto o exercício desses poderes - tecnicamente viáveis – serão eticamente
aceitáveis. Como por exemplo: prever se uma criança irá ou não nascer com grave
doença genética que possa afetar futuramente a sua vida e saúde. Dependendo da
orientação ética, as tecnologias médicas e terapêuticas são alvos de críticas
e, na sua maioria, passam a ser analisadas a partir de comitês hospitalares,
criados especialmente para resolver problemas éticos que, por extensão, têm
grande peso na tomada de decisão clínica.
Uma outra razão pela
qual a ética no campo das ciências ficou relegada a segundo plano baseou-se na crença
de que ciência e tecnologia proveriam continuamente conforto e benefício
indefinidamente. Atividades científicas conduzidas até recentemente consideravam-se
value-free and essentially unproblematic.
O ensino formal de questões éticas relacionadas com ciência e tecnologia ou
estudos com este propósito raramente tem sido alvo do sistema educacional.
Nesse sentido, os recentes
avanços da biotecnologia criaram desafios éticos, estimulando novos ensinamentos
na disciplina de ética em saúde e maior consciência nas questões éticas
envolvidas nas decisões coletivas. Isto tem contribuído não só para a solução de
problemas, mas, talvez, e até com mais importância, para o desenvolvimento de
modalidades e métodos de abordar as questões éticas de modo a promover uma nova
racionalidade diante da vida.
Um dos aspectos mais
significativos que dificultam o ensino da ética em saúde diz respeito ao problema
da identificação do agente. Os profissionais de formação em saúde e que nela se
especializam, particularmente em áreas da saúde pública, podem, simplesmente, não
ter experiência para reconhecer um problema ético quando com ele se defrontam.
Em se identificando com o seu objeto de estudo, esquecem-se, por força desta
mesma formação e experiência acadêmicas, a compreensão mais estendida pela
vida, autonomia individual e privacidade. Ou seja, de uma visão ampliada e
abrangente dos desafios éticos na contemporaneidade e da vida humana associada
em contextos sócio-comunitários.
Como vimos, a carência
epistemológica e o predomínio da tecnologia contribuem para colocar a ética como
disciplina na retaguarda das preocupações referentes à saúde. Assim, o modo de
se inserir a ética nos cursos da saúde, em geral, submete-se às disponibilidades
de docentes e necessidades históricosocial, ora dando-lhe um sentido magistral
– caráter metaético – ora submetendo-a unicamente a estudos de “casos” – ilustração
exagerada sem vínculo teórico – o que revelam inconsistência quando a questão
envolve a vida e a morte de uma pessoa. A postura metaética e os “casos”, no
entanto, internalizam duas desvantagens pedagógicas: a de postergar a própria natureza
da ética, de um lado, e a de subordinar os níveis de questionamentos éticos aos
ditames das normas. Coloca-se a ética sob o signo imperativo das regras e/ou
sob o signo da interrogação, problematizando-a sem regulamentá-la, ainda que a
contínua indagação ética das práticas profissionais seja necessária, ou seja, não
há como negar que nenhuma prática social pode passar ao largo da ética
construída na sociedade.
Um dos pontos chaves é
de que o ensino da ética, como qualquer outra disciplina, transcenda a questão pedagógica,
embora seja muito importante o seu suporte. O que está em causa é saber se queremos
que os profissionais “possuam” ao fim de sua formação as normas, as regras, o
código que deve reger suas práticas, ou se desejamos que os profissionais
tenham desenvolvido a competência ética para problematizar e de constantemente responder
às questões éticas em termos que sejam, ao mesmo tempo, rigorosos e
pertinentes. Em outras palavras: o domínio e a sustentação de competências e
habilidades, principalmente de valores em termos de posicionar-se diante de
diferentes contextos e princípios que envolvem o nascer, o viver e o morrer.
Como se pode ensinar
ética no contexto da saúde sem colocar a questão do sentido múltiplo dado à vida
e à morte? Sem se interrogar sobre as implicações das mudanças da sociedade,
ligadas ao desenvolvimento das tecnologias, às crises econômicas que se sucedem
ininterruptamente, às mudanças demográficas modificando os relacionamentos
intergeracionais, interétnicos e interculturais? Daí advém que a construção da
ética nas áreas da saúde envolve a filosofia, a hermenêutica, a religião, as
tecnologias e a antropologia, para compreender a magnitude do cuidado e a
responsabilidade com o humano em sociedade.
(Disponível
em http://www.scielo.br/pdf/tce/v14n1/a10v14n1 Acesso em 06.02.15 - Às
19h08m [Modificado]).